Escolha errada
Estudo publicado na revista Lancet mostra que cesariana desnecessária coloca em risco a vida da mulher e do bebê
autor: Ricardo Zorzetto
Imagens: Miguel Boyayan
Uma pesquisa internacional publicada na edição de 3 de junho da Lancet, uma das mais respeitadas revistas médicas do mundo, traz um alerta para os médicos e os futuros pais e mães: a realização de partos cirúrgicos ou cesáreos sem uma indicação médica específica coloca em risco a saúde da mulher e do bebê. É um chacoalhão mais do que necessário nos ginecologistas, obstetras e gestores de saúde do mundo todo, que nas últimas quatro décadas viram as taxas de cesarianas desnecessárias crescerem de modo assustador sem as conseguir frear.
O recado das páginas da Lancet assume um significado particular para a América Latina e, em especial, para o Brasil, segundo colocado em realização de partos cesáreos no mundo – uma das principais questões relacionadas à saúde reprodutiva da mulher no país, ao lado da esterilização cirúrgica e da retirada desnecessária do útero (histerectomia). Aqui os índices de partos cirúrgicos insistem em se manter escandalosamente elevados desde a década de 1980, sobretudo entre as mulheres de classe média e alta. Atualmente quatro de cada dez crianças nascem por meio de cesarianas, na maioria das vezes agendadas pelas mães e pelos obstetras bem antes do final da gestação – uma proporção exagerada, duas vezes e meia maior que o índice de 15% aceito pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Difícil de ser modificada, segundo os próprios médicos, essa realidade preocupa porque boa parte dessas cirurgias são desnecessárias e nem sempre representam a forma mais adequada e segura de dar à luz uma criança, como muitas mulheres crêem. Nesses casos, com um pouco de paciência das mães e habilidade dos obstetras, a natureza cumpriria seu papel e esses bebês nasceriam saudáveis de parto normal.
Nesse trabalho coordenado pela OMS e financiado pelo Banco Mundial, epidemiologistas e especialistas em saúde reprodutiva feminina avaliaram o desfecho de quase 100 mil partos realizados entre setembro de 2004 e março de 2005 em oito países da América Latina (Argentina, Brasil, Cuba, Equador, México, Nicarágua, Paraguai e Peru). O resultado confirmou o que se temia: os partos cirúrgicos desnecessários fazem mais mal do que bem.
Quando a taxa de cesáreas de um hospital ultrapassa a faixa que vai de 10% a 20% do total de partos, aumenta muito o risco de complicação para a mãe e o bebê. É maior a probabilidade de a mulher morrer durante o parto, apresentar sangramento grave ou adquirir uma infecção que exija internação no setor de tratamento intensivo. Já a criança corre mais risco de nascer com menos de 37 semanas (prematura) por erro de cálculo médico, de morrer durante o nascimento ou na primeira semana de vida e de necessitar de cuidados intensivos. Mesmo quando se levaram em consideração os diferentes níveis de complexidade dos 120 hospitais avaliados, ou seja, a capacidade de atenderem casos de maior ou menor gravidade, os perigos para a mãe e o bebê não diminuíram. “Todos os indicadores de saúde da mulher e da criança pioram”, afirma o obstetra chileno Aníbal Faúndes, uma das mais respeitadas autoridades internacionais em saúde reprodutiva. Coordenador da equipe de 90 brasileiros que participou desse estudo, Faúndes mudou-se para o Brasil há 30 anos após deixar o Chile na ditatura de Augusto Pinochet depois de coordenar o programa de saúde da mulher no início do governo de Salvador Allende.
Gasto desnecessário - “Como as complicações decorrentes das cesarianas são relativamente raras, os médicos costumam dizer: ‘Isso não acontece nas minhas mãos’”, comenta Faúndes, professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp). “Mas do ponto de vista populacional as conseqüências desses eventos são graves e devem ser levadas em consideração”, diz. Um desses efeitos é o aumento dos gastos públicos com saúde. Nos países desenvolvidos o acréscimo de 1% nas taxas de cesarianas representa um gasto extra de US$ 9,5 milhões. Calcula-se que no Brasil, onde nascem 2,5 milhões de crianças por ano, haja 560 mil cesáreas desnecessárias que consomem quase R$ 84 milhões. “É um dinheiro que poderia ser investido em outras formas de cuidado da mãe ou da criança”, diz Faúndes.
Embora o risco de morrer durante uma cesariana seja muito menor do que foi quase quatro séculos atrás, quando esse procedimento começou a ser feito em mulheres vivas – antes fazia-se a cesárea apenas após a morte da mãe para salvar a vida do bebê –, os partos cirúrgicos dispensáveis contribuem para manter a mortalidade materna brasileira em níveis bem superiores aos de países desenvolvidos como o Reino Unido. Estima-se que entre 75 e 130 brasileiras em cada grupo de 100 mil morram durante o parto ou por complicações associadas à gravidez. Entre as súditas da rainha esse índice é de aproximadamente dez mortes por 100 mil.
Apesar da imprecisão dos dados brasileiros, é fácil associar boa parte dessas mortes à cesariana. Estudos internacionais apontam que perto de cem mulheres perdem a vida a cada 100 mil cesáreas, cinco vezes mais que o parto normal. Até o século 19 três de cada quatro mulheres morriam de infecção ou sangramento intenso (hemorragia) em conseqüência dessa cirurgia. Hoje, em uma cesariana, o médico faz uma incisão de 10 a 15 centímetros no ventre materno logo acima dos pêlos pubianos e corta outras cinco camadas de tecido até alcançar o útero para retirar o bebê.
“É impressionante o grau de abuso da cesariana no país”, afirma a socióloga Jacqueline Pitanguy, diretora da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), que atua na área de direitos reprodutivos e sexuais. “Há por aqui um descaso histórico com gestação e parto”, diz.
A persistência dos índices de cesariana em níveis tão elevados por mais de duas décadas levou o Ministério da Saúde a adotar algumas estratégias – infelizmente, nem sempre suficientes – para tentar reduzir o número de cesáreas. A mais recente é a Campanha de Incentivo ao Parto Normal, lançada em 30 de maio para conscientizar a população sobre a importância do parto normal e ajudar a desfazer a idéia já cristalizada na sociedade de que o parto cirúrgico é melhor e mais seguro.
São três os objetivos da campanha: explicar a importância dos exames de acompanhamento da saúde da mulher e do bebê durante a gestação, mostrar os benefícios do parto normal e reforçar a idéia de que a mulher tem direito a um parto mais acolhedor, sem a realização de procedimentos médicos desnecessários e com o acompanhamento de uma pessoa de sua escolha – é o chamado parto humanizado.
Caminho certo - Mas por que realizar uma campanha de esclarecimento para a população e não para os ginecologistas e obstetras, que por razões éticas deveriam recomendar para a mulher a forma mais apropriada de parto? “Não adianta trabalhar apenas com os médicos”, afirma a epidemiologista Daphne Rattner, da Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde. “Queremos conscientizar as pessoas sobre a importância do parto normal para que passem a cobrar dos profissionais da saúde.” Na opinião de Jorge Francisco Kuhn dos Santos, professor de obstetrícia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), esse é mesmo o caminho: “É fundamental que a mulher esteja mais bem-informada sobre a necessidade de fazer ou não uma cesariana para o seu bebê nascer. Somente quando as mães souberem que o cordão umbilical enrolado no pescoço do bebê ou a redução do líquido amniótico por si sós não representam obrigatoriamente a necessidade de parto cesáreo é que vão lutar para melhorar esse quadro”.
Essa não é a primeira ação do governo federal para tentar reduzir o número de cesarianas desnecessárias. Em 2000 o Ministério da Saúde fez com os estados um pacto pela redução das cesáreas. Uma portaria do ministério determinou que as secretarias estaduais da Saúde acompanhassem o número de partos nos hospitais afiliados ao SUS para garantir que o índice de cesáreas não aumentasse nos estados em que já era inferior a 20% e que baixasse para 25% naqueles em que era superior.
Mas, aparentemente, aconteceu o contrário. “As taxas de cesáreas estão subindo”, afirma Daphne. Há dois anos o ministério iniciou também uma série de cursos de Atenção Obstétrica e Neonatal Humanizadas e Baseadas em Evidências Científicas como parte da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Até maio haviam sido treinadas equipes de cerca de 250 maternidades que se comprometeram a implantar modificações para reduzir a taxa de cesáreas e oferecer o parto normal humanizado em seus hospitais de origem. Essas equipes também assumiram a responsabilidade de repassar o conhecimento para as principais maternidades de seus estados, uma forma de disseminar a informação mais rapidamente entre os quase 6 mil hospitais do país. “A expectativa é de que quanto mais serviços oferecerem atenção humanizada ao parto mais os profissionais passem a compactuar com essa estratégia”, explica Daphne.
Espera-se que os efeitos dessas medidas não se restrinjam ao setor público, em que o número absoluto de partos cesáreos (618 mil por ano) é bem maior que no privado. Mas certamente outras ações serão necessárias para reduzir os índices de partos cirúrgicos particulares ou pagos pelos planos de saúde – menores em valor absoluto, 246 mil cesáreas por ano, mas proporcionalmente mais elevados. Por essa razão, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula o funcionamento dos planos e seguros de saúde, uniu seus esforços aos do ministério. Em 2005 a ANS fez o primeiro diagnóstico das taxas de cesariana no setor e atualmente estuda uma forma de reduzir o índice de cesarianas desnecessárias dos inquietantes 80%.
“Estamos avaliando a estratégia de tornar disponível no site da ANS uma pontuação de cada operadora de plano de saúde, determinada por uma série de indicadores, entre eles o índice de cesarianas”, afirma Karla Santa Cruz Coelho, gerente-geral técnico-assistencial de produtos da ANS. “Pretendemos alcançar uma redução de 15% nos próximos três anos.” Mesmo essas medidas são consideradas tímidas. “É necessária uma ação mais firme”, diz Santos, da Unifesp. “O médico que só faz cesariana deveria ser descredenciado.”
Em um ponto todos concordam: a questão dos partos cirúrgicos desnecessários é um problema de solução complexa que depende tanto da mudança de postura de ginecologistas e obstetras como da sociedade. “Há no Brasil uma cultura medicalizada da saúde da mulher”, explica Daphne Rattner. Suas raízes estão no início do século passado, quando os partos deixaram de ser realizados em casa, com o auxílio de uma parteira que em geral havia ajudado a nascer quase toda a família, e passaram para as mãos dos médicos nas salas de parto dos hospitais, até então destinados ao atendimento das camadas mais pobres da população. O desenvolvimento de técnicas de anestesia e tratamentos com antibióticos para prevenir infecções nos últimos 50 anos também contribuiu para reduzir muito a mortalidade materna e tornar a cesárea a cirurgia mais popular do mundo.
No Brasil a proporção de partos cirúrgicos dobrou durante a década de 1970 e não baixou mais. Hoje as cesarianas correspondem a 82% dos partos pagos por convênios médicos, que atendem 14 milhões de brasileiras com idade entre 10 e 49 anos, e a 30% dos partos feitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), única forma de acesso aos serviços de saúde para 58 milhões de mulheres em idade reprodutiva.
Esse crescimento, no entanto, não se explica somente pela tentativa de proteger a vida da mãe e da criança, como identificaram Faúndes e José Guilherme Cecatti, da Unicamp, já em 1991 em um artigo publicado nos Cadernos de Saúde Pública. Se as cesarianas fossem realizadas apenas com indicação médica – por exemplo, quando não chega oxigênio suficiente para o bebê durante o trabalho de parto –, era de esperar que seus índices fossem mais elevados entre as mulheres mais pobres, sabidamente portadoras de mais complicações durante a gravidez e o parto do que as mais abastadas. Mas não é o que se observa no país, onde essas cirurgias são mais comuns nas classes média e alta.
Outros fatores não-médicos também influenciaram a expansão das taxas de cesariana. Até 1980 o governo federal pagava ao médico mais pelo parto cesáreo que pelo normal, que não incluía anestesia. Na tentativa de reduzir as cesáreas, diminuiu-se a diferença entre o valor do parto normal e o do cesáreo no setor público – hoje o SUS paga aos hospitais, não aos médicos, R$ 317,39 pelo parto normal e R$ 443,68 pela cesárea –, sem muita eficiência.
Controle de natalidade - Além disso, naquele período tornou-se popular no Brasil a esterilização cirúrgica, conseqüência, em parte, da pressão das nações desenvolvidas como os Estados Unidos pela redução do crescimento da população nos países pobres. Em meio à política autoritária que vigorava no país, pregava-se o controle da fecundidade como solução para a pobreza. Resultado: três de cada quatro mulheres aproveitavam a cesariana, muitas vezes induzida pelos médicos, para fazer a esterilização definitiva por meio de uma técnica chamada laqueadura tubária, em que o cirurgião corta e amarra as pontas dos pequenos canais que conduzem os óvulos até o útero.
Proibida em 1997 pela Lei do Planejamento Familiar de ser feita ao mesmo tempo que a cesárea, a laqueadura tubária permanece o método anticoncepcional mais comum no país. Segundo Faúndes, há dois motivos por que as mulheres ainda optam por essa forma de contracepção, difícil de ser revertida em caso de arrependimento: elas desconhecem que outros métodos como o dispositivo intra-uterino (DIU) e os hormônios injetáveis trimestrais são tão eficientes quanto a laqueadura e nem sempre os métodos alternativos estão disponíveis no setor público.
“Há mais de 20 anos o governo federal tomava providências no país para tentar combater o efeito dinheiro”, diz a socióloga Jacqueline Pitanguy, que na década de 1980 presidiu o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, ligado ao Ministério da Justiça e à Presidência da República. “Mas não surtiu muito efeito.” Já no setor privado esse estímulo praticamente não existe. O valor dos partos particulares varia muito e, embora os planos de saúde paguem honorários quase iguais para partos cirúrgicos e normais, os obstetras poupam tempo ao optar pela cirurgia.
“Não dá para culpar apenas o médico, que tem de pagar os gastos para manter seu consultório”, explica Santos. Uma alternativa seria aumentar o valor pago pelo parto natural, que nunca tem hora marcada para ocorrer. Assim, quem sabe, os obstetras se animariam em abrir um espaço na agenda do consultório para pacientemente acompanhar o trabalho de parto, que pode durar mais de 24 horas – em uma cesárea pré-agendada entre médico e paciente, a chamada cesariana com hora marcada, o obstetra é capaz de se deslocar até o hospital, realizar o parto e retornar ao consultório em menos de três horas, mesmo em uma cidade com trânsito complicado como São Paulo.
Mas dinheiro não é tudo. Os próprios médicos se sentem com mais controle da situação quando realizam a cesárea, ainda que sua paciente não tenha consciência completa dos riscos que corre durante essa cirurgia. Afinal, lembra Santos, dificilmente se processa um médico por ele ter realizado uma cesárea feita sem necessidade. “Mesmo que haja uma complicação as pessoas pensam: ‘Pelo menos o médico usou a melhor tecnologia disponível’”, afirma. Esse mesmo médico poderia ser questionado judicialmente se tivesse optado nessa mesma situação por um parto normal.
Essa postura médica é o que o respeitado neonatologista e obstetra norte-americano Marsden Wagner, ex-diretor da área de saúde da mulher e da criança da OMS, chamou de obstetrícia defensiva, uma tendência mundial, em um comentário publicado em 2000 na Lancet. Mas, segundo Wagner, ao realizar a obstetrícia defensiva, os profissionais da saúde violam um princípio fundamental da sua prática: “O que quer que o médico faça deve ser, em primeiro lugar e acima de tudo, em benefício do paciente”.
A psicóloga Ana Cristina Gilbert, a historiadora Maria Helena Cardoso e a pediatra Susana Wuillaume viram que essa confiança na técnica já aparece durante o processo de formação do especialista em um estudo com residentes de ginecologia e obstetrícia do Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio, publicado em maio nos Cadernos de Saúde Pública. “Os residentes se sentem com mais controle sobre a saúde da mulher e sobre o tempo em uma cesariana”, explica Ana Cristina. “Isso é importante para eles, que se vêem profissionalmente desvalorizados na profissão e são muito cobrados pelos pacientes, que buscam neles sempre respostas para seus problemas.”
Uma das motivações dessa forma de agir é a insegurança para realizar o parto normal, conseqüência de como se dá no país a especialização médica nessa área. Concluída a graduação, quem deseja se tornar um obstetra tenta uma disputadíssima vaga em um hospital de alta complexidade, como os universitários. Ali, esse profissional atende sobretudo gestantes de alto risco, com indicação para cesárea. Como não vê situações mais simples, ele perde a habilidade de realizar o parto normal. “Esses profissionais deveriam fazer estágio em casas de parto, onde os bebês em geral nascem naturalmente, acompanhados por enfermeiras obstétricas”, afirma Santos.
Nos últimos anos equipes do Cemicamp e da Unicamp ajudaram a derrubar um argumento muito usado pelos obstetras para justificar a realização das cesarianas: o de que as mulheres preferem a cirurgia por medo da dor do parto normal ou por receio dos efeitos desse tipo parto sobre a vida sexual feminina – em alguns casos, é preciso fazer um pequeno corte na lateral da vagina ou no períneo para facilitar a passagem do bebê. Mas esse receio da dor parece ser apenas palpite médico. “Essa afirmação não se sustenta”, diz Faúndes, que coordenou um estudo com 656 mulheres que haviam tido mais de um parto em hospitais públicos do interior de São Paulo e de Recife, Pernambuco.
Pela via natural - Nove de cada dez mulheres que já haviam experimentado as duas formas de parto preferiam o normal. Mais interessante: entre as que só haviam feito cesarianas, 73% declararam também que a melhor forma de parto é o natural. O motivo mais citado por elas é que a dor do parto normal é menos intensa que a do pós-operatório da cesariana. “A dor no parto normal é forte, mas passa”, diz Jacqueline Pitanguy, mãe de três filhos que nasceram pela via natural depois de muita insistência dela com o médico. “Nem sempre o parto normal é sinônimo de dores horríveis, afinal, como se fazia milhares de anos atrás?” Em 2001 um levantamento com 1.600 mulheres de quatro cidades brasileiras mostrou que parte das que haviam tido filho por cesárea preferiam o parto normal.
A aceitação da cesariana pela mulher é, em parte, conseqüência do desequilíbrio de poder na relação entre médico e paciente. “O parto é um momento de muito medo para a mulher, em especial quando é o do primeiro filho”, explica Jacqueline. “Ela se sente poderosa por estar grávida e, ao mesmo tempo, fragilizada. Por isso acha mais seguro assumir uma postura passiva e deixar a decisão nas mãos do médico.” O obstetra, por sua vez, sente-se mais valorizado quando está no domínio da situação. “Se o médico disser à mãe que o bebê está sofrendo, ela se sujeitará a qualquer coisa”, comenta Santos. Essa diferença de poder também ajuda a explicar tratamentos radicais como a retirada do útero para combater tumores benignos em casos que nem sempre a cirurgia seria necessária (16% do total). Esse procedimento é mais freqüente entre as mulheres de menor renda e nível de escolaridade, como constatou Renata Aranha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Uma forma de reduzir as taxas de parto cesáreo é tornar obrigatória a consulta de um obstetra mais experiente, a conhecida segunda opinião, como mostraram Maria José Osis, Karla Pádua e Aníbal Faúndes, do Cemicamp, e José Guilherme Cecatti, da Unicamp, em artigo na Revista de Saúde Pública de abril. Também se pode estimular a realização de partos em casa, como ainda é feito na Inglaterra em quase metade dos casos. Em 2005 a Universidade de São Paulo (USP) reabriu depois de 33 anos o curso superior para a formação de parteiras, atividade exercida informalmente hoje por entre 40 mil e 60 mil mulheres no Norte e Nordeste do país. “A questão do parto é um problema político porque há médicos e enfermeiras legalmente habilitados para executar essa função”, diz Santos, “e agora novamente haverá parteiras”. A solução certamente não é única, nem virá em pouco tempo.
FONTE: Revista da Fapesp – junho 2006
Estudo publicado na revista Lancet mostra que cesariana desnecessária coloca em risco a vida da mulher e do bebê
autor: Ricardo Zorzetto
Imagens: Miguel Boyayan
Uma pesquisa internacional publicada na edição de 3 de junho da Lancet, uma das mais respeitadas revistas médicas do mundo, traz um alerta para os médicos e os futuros pais e mães: a realização de partos cirúrgicos ou cesáreos sem uma indicação médica específica coloca em risco a saúde da mulher e do bebê. É um chacoalhão mais do que necessário nos ginecologistas, obstetras e gestores de saúde do mundo todo, que nas últimas quatro décadas viram as taxas de cesarianas desnecessárias crescerem de modo assustador sem as conseguir frear.
O recado das páginas da Lancet assume um significado particular para a América Latina e, em especial, para o Brasil, segundo colocado em realização de partos cesáreos no mundo – uma das principais questões relacionadas à saúde reprodutiva da mulher no país, ao lado da esterilização cirúrgica e da retirada desnecessária do útero (histerectomia). Aqui os índices de partos cirúrgicos insistem em se manter escandalosamente elevados desde a década de 1980, sobretudo entre as mulheres de classe média e alta. Atualmente quatro de cada dez crianças nascem por meio de cesarianas, na maioria das vezes agendadas pelas mães e pelos obstetras bem antes do final da gestação – uma proporção exagerada, duas vezes e meia maior que o índice de 15% aceito pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Difícil de ser modificada, segundo os próprios médicos, essa realidade preocupa porque boa parte dessas cirurgias são desnecessárias e nem sempre representam a forma mais adequada e segura de dar à luz uma criança, como muitas mulheres crêem. Nesses casos, com um pouco de paciência das mães e habilidade dos obstetras, a natureza cumpriria seu papel e esses bebês nasceriam saudáveis de parto normal.
Nesse trabalho coordenado pela OMS e financiado pelo Banco Mundial, epidemiologistas e especialistas em saúde reprodutiva feminina avaliaram o desfecho de quase 100 mil partos realizados entre setembro de 2004 e março de 2005 em oito países da América Latina (Argentina, Brasil, Cuba, Equador, México, Nicarágua, Paraguai e Peru). O resultado confirmou o que se temia: os partos cirúrgicos desnecessários fazem mais mal do que bem.
Quando a taxa de cesáreas de um hospital ultrapassa a faixa que vai de 10% a 20% do total de partos, aumenta muito o risco de complicação para a mãe e o bebê. É maior a probabilidade de a mulher morrer durante o parto, apresentar sangramento grave ou adquirir uma infecção que exija internação no setor de tratamento intensivo. Já a criança corre mais risco de nascer com menos de 37 semanas (prematura) por erro de cálculo médico, de morrer durante o nascimento ou na primeira semana de vida e de necessitar de cuidados intensivos. Mesmo quando se levaram em consideração os diferentes níveis de complexidade dos 120 hospitais avaliados, ou seja, a capacidade de atenderem casos de maior ou menor gravidade, os perigos para a mãe e o bebê não diminuíram. “Todos os indicadores de saúde da mulher e da criança pioram”, afirma o obstetra chileno Aníbal Faúndes, uma das mais respeitadas autoridades internacionais em saúde reprodutiva. Coordenador da equipe de 90 brasileiros que participou desse estudo, Faúndes mudou-se para o Brasil há 30 anos após deixar o Chile na ditatura de Augusto Pinochet depois de coordenar o programa de saúde da mulher no início do governo de Salvador Allende.
Gasto desnecessário - “Como as complicações decorrentes das cesarianas são relativamente raras, os médicos costumam dizer: ‘Isso não acontece nas minhas mãos’”, comenta Faúndes, professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp). “Mas do ponto de vista populacional as conseqüências desses eventos são graves e devem ser levadas em consideração”, diz. Um desses efeitos é o aumento dos gastos públicos com saúde. Nos países desenvolvidos o acréscimo de 1% nas taxas de cesarianas representa um gasto extra de US$ 9,5 milhões. Calcula-se que no Brasil, onde nascem 2,5 milhões de crianças por ano, haja 560 mil cesáreas desnecessárias que consomem quase R$ 84 milhões. “É um dinheiro que poderia ser investido em outras formas de cuidado da mãe ou da criança”, diz Faúndes.
Embora o risco de morrer durante uma cesariana seja muito menor do que foi quase quatro séculos atrás, quando esse procedimento começou a ser feito em mulheres vivas – antes fazia-se a cesárea apenas após a morte da mãe para salvar a vida do bebê –, os partos cirúrgicos dispensáveis contribuem para manter a mortalidade materna brasileira em níveis bem superiores aos de países desenvolvidos como o Reino Unido. Estima-se que entre 75 e 130 brasileiras em cada grupo de 100 mil morram durante o parto ou por complicações associadas à gravidez. Entre as súditas da rainha esse índice é de aproximadamente dez mortes por 100 mil.
Apesar da imprecisão dos dados brasileiros, é fácil associar boa parte dessas mortes à cesariana. Estudos internacionais apontam que perto de cem mulheres perdem a vida a cada 100 mil cesáreas, cinco vezes mais que o parto normal. Até o século 19 três de cada quatro mulheres morriam de infecção ou sangramento intenso (hemorragia) em conseqüência dessa cirurgia. Hoje, em uma cesariana, o médico faz uma incisão de 10 a 15 centímetros no ventre materno logo acima dos pêlos pubianos e corta outras cinco camadas de tecido até alcançar o útero para retirar o bebê.
“É impressionante o grau de abuso da cesariana no país”, afirma a socióloga Jacqueline Pitanguy, diretora da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), que atua na área de direitos reprodutivos e sexuais. “Há por aqui um descaso histórico com gestação e parto”, diz.
A persistência dos índices de cesariana em níveis tão elevados por mais de duas décadas levou o Ministério da Saúde a adotar algumas estratégias – infelizmente, nem sempre suficientes – para tentar reduzir o número de cesáreas. A mais recente é a Campanha de Incentivo ao Parto Normal, lançada em 30 de maio para conscientizar a população sobre a importância do parto normal e ajudar a desfazer a idéia já cristalizada na sociedade de que o parto cirúrgico é melhor e mais seguro.
São três os objetivos da campanha: explicar a importância dos exames de acompanhamento da saúde da mulher e do bebê durante a gestação, mostrar os benefícios do parto normal e reforçar a idéia de que a mulher tem direito a um parto mais acolhedor, sem a realização de procedimentos médicos desnecessários e com o acompanhamento de uma pessoa de sua escolha – é o chamado parto humanizado.
Caminho certo - Mas por que realizar uma campanha de esclarecimento para a população e não para os ginecologistas e obstetras, que por razões éticas deveriam recomendar para a mulher a forma mais apropriada de parto? “Não adianta trabalhar apenas com os médicos”, afirma a epidemiologista Daphne Rattner, da Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde. “Queremos conscientizar as pessoas sobre a importância do parto normal para que passem a cobrar dos profissionais da saúde.” Na opinião de Jorge Francisco Kuhn dos Santos, professor de obstetrícia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), esse é mesmo o caminho: “É fundamental que a mulher esteja mais bem-informada sobre a necessidade de fazer ou não uma cesariana para o seu bebê nascer. Somente quando as mães souberem que o cordão umbilical enrolado no pescoço do bebê ou a redução do líquido amniótico por si sós não representam obrigatoriamente a necessidade de parto cesáreo é que vão lutar para melhorar esse quadro”.
Essa não é a primeira ação do governo federal para tentar reduzir o número de cesarianas desnecessárias. Em 2000 o Ministério da Saúde fez com os estados um pacto pela redução das cesáreas. Uma portaria do ministério determinou que as secretarias estaduais da Saúde acompanhassem o número de partos nos hospitais afiliados ao SUS para garantir que o índice de cesáreas não aumentasse nos estados em que já era inferior a 20% e que baixasse para 25% naqueles em que era superior.
Mas, aparentemente, aconteceu o contrário. “As taxas de cesáreas estão subindo”, afirma Daphne. Há dois anos o ministério iniciou também uma série de cursos de Atenção Obstétrica e Neonatal Humanizadas e Baseadas em Evidências Científicas como parte da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Até maio haviam sido treinadas equipes de cerca de 250 maternidades que se comprometeram a implantar modificações para reduzir a taxa de cesáreas e oferecer o parto normal humanizado em seus hospitais de origem. Essas equipes também assumiram a responsabilidade de repassar o conhecimento para as principais maternidades de seus estados, uma forma de disseminar a informação mais rapidamente entre os quase 6 mil hospitais do país. “A expectativa é de que quanto mais serviços oferecerem atenção humanizada ao parto mais os profissionais passem a compactuar com essa estratégia”, explica Daphne.
Espera-se que os efeitos dessas medidas não se restrinjam ao setor público, em que o número absoluto de partos cesáreos (618 mil por ano) é bem maior que no privado. Mas certamente outras ações serão necessárias para reduzir os índices de partos cirúrgicos particulares ou pagos pelos planos de saúde – menores em valor absoluto, 246 mil cesáreas por ano, mas proporcionalmente mais elevados. Por essa razão, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula o funcionamento dos planos e seguros de saúde, uniu seus esforços aos do ministério. Em 2005 a ANS fez o primeiro diagnóstico das taxas de cesariana no setor e atualmente estuda uma forma de reduzir o índice de cesarianas desnecessárias dos inquietantes 80%.
“Estamos avaliando a estratégia de tornar disponível no site da ANS uma pontuação de cada operadora de plano de saúde, determinada por uma série de indicadores, entre eles o índice de cesarianas”, afirma Karla Santa Cruz Coelho, gerente-geral técnico-assistencial de produtos da ANS. “Pretendemos alcançar uma redução de 15% nos próximos três anos.” Mesmo essas medidas são consideradas tímidas. “É necessária uma ação mais firme”, diz Santos, da Unifesp. “O médico que só faz cesariana deveria ser descredenciado.”
Em um ponto todos concordam: a questão dos partos cirúrgicos desnecessários é um problema de solução complexa que depende tanto da mudança de postura de ginecologistas e obstetras como da sociedade. “Há no Brasil uma cultura medicalizada da saúde da mulher”, explica Daphne Rattner. Suas raízes estão no início do século passado, quando os partos deixaram de ser realizados em casa, com o auxílio de uma parteira que em geral havia ajudado a nascer quase toda a família, e passaram para as mãos dos médicos nas salas de parto dos hospitais, até então destinados ao atendimento das camadas mais pobres da população. O desenvolvimento de técnicas de anestesia e tratamentos com antibióticos para prevenir infecções nos últimos 50 anos também contribuiu para reduzir muito a mortalidade materna e tornar a cesárea a cirurgia mais popular do mundo.
No Brasil a proporção de partos cirúrgicos dobrou durante a década de 1970 e não baixou mais. Hoje as cesarianas correspondem a 82% dos partos pagos por convênios médicos, que atendem 14 milhões de brasileiras com idade entre 10 e 49 anos, e a 30% dos partos feitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), única forma de acesso aos serviços de saúde para 58 milhões de mulheres em idade reprodutiva.
Esse crescimento, no entanto, não se explica somente pela tentativa de proteger a vida da mãe e da criança, como identificaram Faúndes e José Guilherme Cecatti, da Unicamp, já em 1991 em um artigo publicado nos Cadernos de Saúde Pública. Se as cesarianas fossem realizadas apenas com indicação médica – por exemplo, quando não chega oxigênio suficiente para o bebê durante o trabalho de parto –, era de esperar que seus índices fossem mais elevados entre as mulheres mais pobres, sabidamente portadoras de mais complicações durante a gravidez e o parto do que as mais abastadas. Mas não é o que se observa no país, onde essas cirurgias são mais comuns nas classes média e alta.
Outros fatores não-médicos também influenciaram a expansão das taxas de cesariana. Até 1980 o governo federal pagava ao médico mais pelo parto cesáreo que pelo normal, que não incluía anestesia. Na tentativa de reduzir as cesáreas, diminuiu-se a diferença entre o valor do parto normal e o do cesáreo no setor público – hoje o SUS paga aos hospitais, não aos médicos, R$ 317,39 pelo parto normal e R$ 443,68 pela cesárea –, sem muita eficiência.
Controle de natalidade - Além disso, naquele período tornou-se popular no Brasil a esterilização cirúrgica, conseqüência, em parte, da pressão das nações desenvolvidas como os Estados Unidos pela redução do crescimento da população nos países pobres. Em meio à política autoritária que vigorava no país, pregava-se o controle da fecundidade como solução para a pobreza. Resultado: três de cada quatro mulheres aproveitavam a cesariana, muitas vezes induzida pelos médicos, para fazer a esterilização definitiva por meio de uma técnica chamada laqueadura tubária, em que o cirurgião corta e amarra as pontas dos pequenos canais que conduzem os óvulos até o útero.
Proibida em 1997 pela Lei do Planejamento Familiar de ser feita ao mesmo tempo que a cesárea, a laqueadura tubária permanece o método anticoncepcional mais comum no país. Segundo Faúndes, há dois motivos por que as mulheres ainda optam por essa forma de contracepção, difícil de ser revertida em caso de arrependimento: elas desconhecem que outros métodos como o dispositivo intra-uterino (DIU) e os hormônios injetáveis trimestrais são tão eficientes quanto a laqueadura e nem sempre os métodos alternativos estão disponíveis no setor público.
“Há mais de 20 anos o governo federal tomava providências no país para tentar combater o efeito dinheiro”, diz a socióloga Jacqueline Pitanguy, que na década de 1980 presidiu o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, ligado ao Ministério da Justiça e à Presidência da República. “Mas não surtiu muito efeito.” Já no setor privado esse estímulo praticamente não existe. O valor dos partos particulares varia muito e, embora os planos de saúde paguem honorários quase iguais para partos cirúrgicos e normais, os obstetras poupam tempo ao optar pela cirurgia.
“Não dá para culpar apenas o médico, que tem de pagar os gastos para manter seu consultório”, explica Santos. Uma alternativa seria aumentar o valor pago pelo parto natural, que nunca tem hora marcada para ocorrer. Assim, quem sabe, os obstetras se animariam em abrir um espaço na agenda do consultório para pacientemente acompanhar o trabalho de parto, que pode durar mais de 24 horas – em uma cesárea pré-agendada entre médico e paciente, a chamada cesariana com hora marcada, o obstetra é capaz de se deslocar até o hospital, realizar o parto e retornar ao consultório em menos de três horas, mesmo em uma cidade com trânsito complicado como São Paulo.
Mas dinheiro não é tudo. Os próprios médicos se sentem com mais controle da situação quando realizam a cesárea, ainda que sua paciente não tenha consciência completa dos riscos que corre durante essa cirurgia. Afinal, lembra Santos, dificilmente se processa um médico por ele ter realizado uma cesárea feita sem necessidade. “Mesmo que haja uma complicação as pessoas pensam: ‘Pelo menos o médico usou a melhor tecnologia disponível’”, afirma. Esse mesmo médico poderia ser questionado judicialmente se tivesse optado nessa mesma situação por um parto normal.
Essa postura médica é o que o respeitado neonatologista e obstetra norte-americano Marsden Wagner, ex-diretor da área de saúde da mulher e da criança da OMS, chamou de obstetrícia defensiva, uma tendência mundial, em um comentário publicado em 2000 na Lancet. Mas, segundo Wagner, ao realizar a obstetrícia defensiva, os profissionais da saúde violam um princípio fundamental da sua prática: “O que quer que o médico faça deve ser, em primeiro lugar e acima de tudo, em benefício do paciente”.
A psicóloga Ana Cristina Gilbert, a historiadora Maria Helena Cardoso e a pediatra Susana Wuillaume viram que essa confiança na técnica já aparece durante o processo de formação do especialista em um estudo com residentes de ginecologia e obstetrícia do Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio, publicado em maio nos Cadernos de Saúde Pública. “Os residentes se sentem com mais controle sobre a saúde da mulher e sobre o tempo em uma cesariana”, explica Ana Cristina. “Isso é importante para eles, que se vêem profissionalmente desvalorizados na profissão e são muito cobrados pelos pacientes, que buscam neles sempre respostas para seus problemas.”
Uma das motivações dessa forma de agir é a insegurança para realizar o parto normal, conseqüência de como se dá no país a especialização médica nessa área. Concluída a graduação, quem deseja se tornar um obstetra tenta uma disputadíssima vaga em um hospital de alta complexidade, como os universitários. Ali, esse profissional atende sobretudo gestantes de alto risco, com indicação para cesárea. Como não vê situações mais simples, ele perde a habilidade de realizar o parto normal. “Esses profissionais deveriam fazer estágio em casas de parto, onde os bebês em geral nascem naturalmente, acompanhados por enfermeiras obstétricas”, afirma Santos.
Nos últimos anos equipes do Cemicamp e da Unicamp ajudaram a derrubar um argumento muito usado pelos obstetras para justificar a realização das cesarianas: o de que as mulheres preferem a cirurgia por medo da dor do parto normal ou por receio dos efeitos desse tipo parto sobre a vida sexual feminina – em alguns casos, é preciso fazer um pequeno corte na lateral da vagina ou no períneo para facilitar a passagem do bebê. Mas esse receio da dor parece ser apenas palpite médico. “Essa afirmação não se sustenta”, diz Faúndes, que coordenou um estudo com 656 mulheres que haviam tido mais de um parto em hospitais públicos do interior de São Paulo e de Recife, Pernambuco.
Pela via natural - Nove de cada dez mulheres que já haviam experimentado as duas formas de parto preferiam o normal. Mais interessante: entre as que só haviam feito cesarianas, 73% declararam também que a melhor forma de parto é o natural. O motivo mais citado por elas é que a dor do parto normal é menos intensa que a do pós-operatório da cesariana. “A dor no parto normal é forte, mas passa”, diz Jacqueline Pitanguy, mãe de três filhos que nasceram pela via natural depois de muita insistência dela com o médico. “Nem sempre o parto normal é sinônimo de dores horríveis, afinal, como se fazia milhares de anos atrás?” Em 2001 um levantamento com 1.600 mulheres de quatro cidades brasileiras mostrou que parte das que haviam tido filho por cesárea preferiam o parto normal.
A aceitação da cesariana pela mulher é, em parte, conseqüência do desequilíbrio de poder na relação entre médico e paciente. “O parto é um momento de muito medo para a mulher, em especial quando é o do primeiro filho”, explica Jacqueline. “Ela se sente poderosa por estar grávida e, ao mesmo tempo, fragilizada. Por isso acha mais seguro assumir uma postura passiva e deixar a decisão nas mãos do médico.” O obstetra, por sua vez, sente-se mais valorizado quando está no domínio da situação. “Se o médico disser à mãe que o bebê está sofrendo, ela se sujeitará a qualquer coisa”, comenta Santos. Essa diferença de poder também ajuda a explicar tratamentos radicais como a retirada do útero para combater tumores benignos em casos que nem sempre a cirurgia seria necessária (16% do total). Esse procedimento é mais freqüente entre as mulheres de menor renda e nível de escolaridade, como constatou Renata Aranha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Uma forma de reduzir as taxas de parto cesáreo é tornar obrigatória a consulta de um obstetra mais experiente, a conhecida segunda opinião, como mostraram Maria José Osis, Karla Pádua e Aníbal Faúndes, do Cemicamp, e José Guilherme Cecatti, da Unicamp, em artigo na Revista de Saúde Pública de abril. Também se pode estimular a realização de partos em casa, como ainda é feito na Inglaterra em quase metade dos casos. Em 2005 a Universidade de São Paulo (USP) reabriu depois de 33 anos o curso superior para a formação de parteiras, atividade exercida informalmente hoje por entre 40 mil e 60 mil mulheres no Norte e Nordeste do país. “A questão do parto é um problema político porque há médicos e enfermeiras legalmente habilitados para executar essa função”, diz Santos, “e agora novamente haverá parteiras”. A solução certamente não é única, nem virá em pouco tempo.
FONTE: Revista da Fapesp – junho 2006
0 Respostas a “Escolha Errada”