Parteira, profissão que renasce
escrito por: Tricia em quinta-feira, novembro 30, 2006 às 11:40 AM.
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Unindo ciência e tradição, enfermeiras obstétricas ganham espaço na assistência ao parto
LÚCIA NASCIMENTO
Às seis horas da manhã de uma sexta-feira, Helka enfrentava as dores do trabalho de parto num congestionamento da Marginal Tietê, na capital paulista. Chegou a pensar em correr para o hospital mais próximo, mas desistiu. Seu primeiro filho, Yan, hoje com 9 anos, nascera num parto cheio de intervenções médicas desnecessárias, e agora ela queria um atendimento mais humanizado, sem correria nem tratamento impessoal.
Quando finalmente chegou à Casa de Parto de Sapopemba, na zona leste da cidade, as enfermeiras obstétricas vieram recepcioná-la na porta, chamando-a pelo nome – apesar de ela ter estado ali apenas uma vez. Helka recebeu massagens e tomou chás para aliviar a dor e logo a bolsa estourou.
Após encontrar uma posição confortável para o parto – ela preferiu ficar na vertical –, sentiu-se pronta e segura para o grande momento. A todo instante as enfermeiras explicavam os movimentos do bebê e o porquê de cada dor, tranqüilizando-a. Às sete e quarenta Rav nasceu e, antes mesmo de ter o cordão umbilical cortado, foi para o colo da mãe.
No imaginário cultural brasileiro, as figuras de assistência ao parto se resumem a médicos, em hospitais, e parteiras, em áreas pobres do interior do país. Uma figura ainda pouco conhecida, mas que tem ganhado o reconhecimento do governo e da sociedade, é a das parteiras profissionais – enfermeiras obstétricas que atuam nas grandes cidades e vêem o parto como um evento natural, que, se estiver bem preparado e livre de complicações, pode muito bem ocorrer fora de um hospital.
Como herança das parteiras tradicionais – que aprenderam o ofício na prática –, essas profissionais sabem da importância de tratar a mulher como protagonista no parto, respeitando seus desejos e aliviando as dores com conforto emocional, técnicas de relaxamento e chás. Diferentemente do que acontece na zona rural, entretanto, elas foram formadas em universidades para fazer o parto de gestantes de baixo risco e são tão capacitadas quanto os médicos obstetras para esse atendimento.
Locais de atuação
O bairro de São Mateus, no extremo leste da capital paulista, tem 400 mil habitantes e é um dos mais pobres da cidade. Lá, o Hospital Geral de São Mateus, pertencente ao Sistema Único de Saúde (SUS), possui um Centro de Parto Natural (CPN), inaugurado em dezembro do ano passado. Nessa unidade, as enfermeiras obstétricas prestam assistência em suítes individuais, que garantem privacidade e segurança, pois têm à disposição todos os equipamentos necessários para cuidar da mãe e do bebê.
A criação de locais acolhedores em hospitais de regiões pobres das grandes cidades é uma conquista, na opinião de Teresa Sá Martins, enfermeira obstétrica e supervisora do CPN de São Mateus. Segundo ela, ali a gestante é incentivada a levar um acompanhante, que pode ficar a seu lado durante o trabalho de parto e o nascimento. Além disso, a mulher tem liberdade de movimentos, escolhe a posição mais confortável, se alimenta se tiver vontade e não precisa ficar recebendo soro. Pode, ainda, utilizar uma banheira de hidromassagem para relaxar nos intervalos entre as contrações.
No Centro de Parto Natural, como o próprio nome indica, as intervenções médicas só ocorrem quando surgem complicações. A filosofia é permitir que a mulher se sinta à vontade e deixe seu organismo agir livremente, sem uso de hormônios para acelerar o processo, sem cortes para facilitar a saída do bebê (a chamada episiotomia) e com a utilização de métodos alternativos de relaxamento.
Márcia, de 21 anos, que teve seu segundo filho em junho deste ano no CPN, declara: "Foi muito bom. As enfermeiras são cuidadosas, deixam comer e andar, não tiram o bebê de perto e também não colocam a gente no soro". Foi esse atendimento diferenciado que Helka Luciana de Azevedo, assistente de fotografia, de 31 anos, buscou na Casa de Parto de Sapopemba.
Diferentemente dos CPN, que ficam dentro de hospitais, as casas de parto tanto podem estar acopladas a um hospital como apenas ter um de referência, para onde são encaminhadas as gestantes que apresentam algum problema durante o trabalho de parto. Helka, no entanto, apesar de ter ficado satisfeita com o tratamento, tem uma queixa: "Bem que podiam ampliar o número de casas de parto, colocando uma em cada região da cidade".
"Hoje, há apenas cinco casas de parto funcionando a pleno vapor no país: a do Hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte; a de Juiz de Fora (MG); a Casa de Parto David Capistrano Filho, no Rio de Janeiro, e duas na cidade de São Paulo: a Casa de Maria e a Casa de Parto de Sapopemba", afirma Isa Paula Hamouche, técnica da área de saúde da mulher do Ministério da Saúde. E a principal razão apontada para a pequena quantidade de locais como esses é a falta de disposição dos governos estaduais e municipais.
Por essa razão, as que existem têm sido cada vez mais procuradas. A Casa de Parto David Capistrano Filho, no bairro de Realengo, na pobre região oeste da cidade do Rio de Janeiro, já atendeu a mais de 500 partos desde que foi inaugurada, em 8 de março de 2004. Como não é acoplada a um hospital, uma ambulância fica de plantão 24 horas por dia, para transportar gestantes que apresentem algum problema até a Maternidade Alexander Fleming, que fica a 8 quilômetros do local. Nesses casos, a equipe do hospital – onde também trabalham algumas das enfermeiras obstétricas da casa de parto – é imediatamente acionada.
Riscos
Além do atendimento em casas de parto e em centros de parto natural, as enfermeiras obstétricas (e também alguns médicos) prestam assistência em casa. Essa modalidade, no entanto, ainda é vista com cautela no Brasil. Em países como Holanda e Inglaterra, o parto domiciliar é incentivado, chegando, respectivamente, a 40% e 47% do total.
Para a socióloga e diretora da organização não-governamental Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), Jacqueline Pitanguy, dar à luz em casa não significa abrir mão do que a tecnologia pode oferecer. Se o bebê está bem posicionado e o pré-natal foi bem feito, não há problema.
A classe médica, em geral, se mostra contrária. "Pode-se fazer parto domiciliar? Sim, mas não se deve. Os riscos são raros, talvez de menos de 1%, mas quando surgem podem ser fatais para o bebê e até para a mãe. Mesmo com uma ambulância à disposição, numa cidade como São Paulo são muitas as variáveis. A mulher precisa saber que corre um risco", afirma Mario Macoto Kondo, diretor técnico do Centro Obstétrico do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP).
Nem todos, no entanto, vêem problema no fato de dar à luz fora do ambiente hospitalar. A começar pelo Ministério da Saúde: "É um direito da mulher escolher onde vai ter seu bebê. No mundo inteiro se discute o movimento de descentralização do atendimento ao parto e a saída desse procedimento da maternidade. Em alguns momentos, o aparato hospitalar pode até ser negativo para a mulher", afirma Isa Hamouche.
"O modelo que deve vingar é o que une a casa de parto – com assistência de enfermeiras obstétricas, ambiente familiar e privacidade – a um hospital, onde a total segurança também está garantida", enfatiza Aníbal Faúndes, coordenador de estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e pesquisador do Centro de Pesquisas Materno-Infantis de Campinas (Cemicamp).
De acordo com Simone Grilo Diniz, médica e professora do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da USP, embora o parto ainda seja descrito por muitos médicos como um evento de risco, as mais recentes evidências científicas mostram que, ao contrário, para mulheres que não apresentam problemas de saúde ou alterações durante a gravidez não há nenhum perigo. "O máximo que se puder fazer para não atrapalhar o processo fisiológico, melhor. Isso não significa que não se deva estar atento. A maioria das mulheres só precisa de vigilância – ver se mãe e bebê estão bem – e privacidade", declara.
Essa idéia também é defendida por quem presta assistência a partos domiciliares. "O ambiente acolhedor do lar facilita a liberação de oxitocina e de endorfina, hormônios necessários para que o parto aconteça de forma natural", argumenta Heloísa Lessa, enfermeira obstétrica que atua no Rio de Janeiro e membro da Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa).
Cláudia Orthof, médica e também membro da ReHuNa, trabalha em equipe com Heloísa e garante que nenhuma gestante que possa apresentar complicações terá o parto feito em casa. Por precaução, em todos os nascimentos um obstetra e um pediatra são contatados e ficam em alerta para qualquer eventualidade.
Para Vilma Nishi, enfermeira obstétrica que já realizou mais de 80 partos domiciliares na cidade de São Paulo, o maior problema é a mulher não admitir fraquejar. "Quando combino de atender um parto em casa, já aviso à futura mãe: se eu disser ‘agora é hora de ir para o hospital’, não há por que discutir. Nunca tive de sair correndo, mas há casos em que a gestante apresenta algum bloqueio ou se sente insegura. Nessas circunstâncias, vamos para um hospital." Por via das dúvidas, Vilma mantém um esquema de referência montado. Como a maioria das mulheres que atende possui plano de saúde, orienta as gestantes para que façam o pré-natal com ela e também com um médico do convênio. "Se for preciso ir para o hospital, haverá alguém para – como elas dizem – ajudar no ‘plano B’", declara.
Heloísa completa que ter um esquema de referência por perto é fundamental: "Se estou a três horas de um hospital, o risco de atender em casa pode ser grande. Mas, se puder chegar lá em cinco minutos, não há problema. O parto domiciliar é seguro, desde que os limites sejam respeitados".
Convergência
Um ponto a respeito do qual todos concordam é a necessidade de melhorar o pré-natal, para evitar que complicações imprevistas atrapalhem o andamento do trabalho de parto em mulheres saudáveis e sem alterações. "Uma coisa que pesa muito é o vínculo que se estabelece durante o período de gravidez. O pré-natal, na minha opinião, tem de ser feito de 15 em 15 dias, com pelo menos uma hora e meia de consulta. Quando se procede dessa maneira, trabalhando todas as questões envolvidas, a opção pelo parto domiciliar é praticamente uma conseqüência", afirma Heloísa.
"A questão mais importante é o preparo da paciente, que muitas vezes não acontece de forma adequada. Num pré-natal bem-feito, é possível identificar fatores que podem levar a riscos no trabalho de parto. Mas, de modo geral, o enfoque é muito tecnicista, e a dimensão humana acaba sendo deixada de lado. Essa é uma deficiência, hoje, em obstetrícia. O médico faz exames brilhantes e se esquece do aspecto emocional", declara Mario Kondo.
A convergência entre as duas classes, entretanto, se resume praticamente ao pré-natal. Em 2004, por exemplo, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) tentou impedir, sem sucesso, o funcionamento da Casa de Parto David Capistrano Filho, e entrou com uma ação na Justiça que pedia o fechamento da instituição.
Algumas décadas atrás, o antagonismo não era tão acentuado. Até 1970, as parteiras profissionais eram formadas na faculdade de medicina, no curso de obstetrícia, e trabalhavam em conjunto com os médicos. A partir de meados desse ano, porém, quando a profissão se tornou uma especialização da enfermagem e houve a proliferação dos planos de saúde, os conflitos hierárquicos passaram a ser constantes. "Acaba então a parceria que existia nas clínicas particulares. Um fator relevante foi a má remuneração feita pelos convênios, que incentivou os médicos a aumentar o número de gestantes que atendiam, dando preferência à cesárea – prática na qual enfermeiras obstétricas não podem atuar. No fim da década de 1980, a rivalidade entre as classes já era extremamente crítica", esclarece Dulce Gualda, coordenadora do curso de obstetrícia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP Leste, que, criado em 2005, trouxe de volta a possibilidade de formação universitária de parteiras profissionais.
"Hoje, há muitas mulheres morrendo de causas evitáveis no Brasil, e isso é bastante grave. Os médicos, de maneira geral, não confiam nas enfermeiras obstétricas para a assistência a gestantes de baixo risco, mas como confiar na classe médica como um todo se o índice de mortalidade materna é absurdo?", questiona Heloísa.
Mortalidade materna
É realmente impressionante: 75 brasileiras, em cada grupo de 100 mil mulheres, morrem por complicações do parto ou durante a gravidez. As estimativas, entretanto, são de que esse número chegue a 130, se forem considerados os casos em que a morte não é registrada como decorrência de complicações durante ou após o parto. Em países desenvolvidos, como a Inglaterra, são cerca de dez mortes por 100 mil.
Em parte, o índice de mortalidade materna se deve à elevada taxa de cesáreas no país, que ultrapassa os 15% recomendados pela OMS. As estatísticas falam por si mesmas: no Brasil, pouco mais de 3% das grávidas têm seus bebês em casas de parto ou na própria residência. Entre as que dão à luz no ambiente hospitalar, o parto natural também não é o preferido: de acordo com o Ministério da Saúde, 39,71% fazem cesáreas no sistema público de saúde e, nos hospitais particulares, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), esse percentual sobe para 79,7%.
Esses dados – alarmantes – colocam o Brasil na posição de vice-líder mundial em número de cesáreas, atrás apenas do Chile. "Esse tipo de parto eleva o risco de infecções, de hemorragia e até de a mulher precisar retirar o útero", alerta Aníbal Faúndes. Além de aumentar as probabilidades de complicações graves como essas, e ainda de pneumonia e septicemia, a cesárea traz, para cerca de um terço das mães, problemas como febre, hematoma, infecção no trato urinário ou no útero, ferida cirúrgica e paralisia do intestino ou da bexiga.
"A comparação entre bebês nascidos de cesáreas por razões não-médicas e os de partos vaginais também comprova que, no primeiro caso, é quase cinco vezes maior o risco de haver necessidade de cuidados intensivos ou semi-intensivos, ou ainda de assistência respiratória", alerta Simone.
Além disso, deve-se considerar que há diversos procedimentos médicos invasivos realizados rotineiramente no ambiente hospitalar, como raspagem de pêlos, lavagem intestinal, uso de soro e de hormônios para acelerar o processo, episiotomia e jejum, entre outros. "A maioria dessas intervenções é imposta, ou seja, a mulher nem é consultada. Tudo isso acabou por transformar o parto natural que acontece em hospital em uma coisa horrenda, levando muitas grávidas a optar pela cesárea, por acreditar que é menos dolorida", lamenta Simone.
A perspectiva é que as mudanças iniciadas no modelo de assistência ao parto no Brasil se consolidem lentamente, graças, inclusive, à reabertura do curso de obstetrícia destinado à formação de parteiras profissionais. De acordo com Dulce Gualda, os alunos da EACH (também há homens na graduação: de 60 matriculados, oito são do sexo masculino) recebem "uma visão de parto num contexto mais amplo, de cultura, de sociedade, de envolvimento político, de transformação do sistema. É um curso que começa com a saúde e depois entra na doença, diferentemente do enfoque tradicional, que tende a se fixar nesta última". A absorção desses profissionais no mercado de trabalho ainda é, contudo, uma incógnita.
FONTE: Problemas Brasileiros
LÚCIA NASCIMENTO
Às seis horas da manhã de uma sexta-feira, Helka enfrentava as dores do trabalho de parto num congestionamento da Marginal Tietê, na capital paulista. Chegou a pensar em correr para o hospital mais próximo, mas desistiu. Seu primeiro filho, Yan, hoje com 9 anos, nascera num parto cheio de intervenções médicas desnecessárias, e agora ela queria um atendimento mais humanizado, sem correria nem tratamento impessoal.
Quando finalmente chegou à Casa de Parto de Sapopemba, na zona leste da cidade, as enfermeiras obstétricas vieram recepcioná-la na porta, chamando-a pelo nome – apesar de ela ter estado ali apenas uma vez. Helka recebeu massagens e tomou chás para aliviar a dor e logo a bolsa estourou.
Após encontrar uma posição confortável para o parto – ela preferiu ficar na vertical –, sentiu-se pronta e segura para o grande momento. A todo instante as enfermeiras explicavam os movimentos do bebê e o porquê de cada dor, tranqüilizando-a. Às sete e quarenta Rav nasceu e, antes mesmo de ter o cordão umbilical cortado, foi para o colo da mãe.
No imaginário cultural brasileiro, as figuras de assistência ao parto se resumem a médicos, em hospitais, e parteiras, em áreas pobres do interior do país. Uma figura ainda pouco conhecida, mas que tem ganhado o reconhecimento do governo e da sociedade, é a das parteiras profissionais – enfermeiras obstétricas que atuam nas grandes cidades e vêem o parto como um evento natural, que, se estiver bem preparado e livre de complicações, pode muito bem ocorrer fora de um hospital.
Como herança das parteiras tradicionais – que aprenderam o ofício na prática –, essas profissionais sabem da importância de tratar a mulher como protagonista no parto, respeitando seus desejos e aliviando as dores com conforto emocional, técnicas de relaxamento e chás. Diferentemente do que acontece na zona rural, entretanto, elas foram formadas em universidades para fazer o parto de gestantes de baixo risco e são tão capacitadas quanto os médicos obstetras para esse atendimento.
Locais de atuação
O bairro de São Mateus, no extremo leste da capital paulista, tem 400 mil habitantes e é um dos mais pobres da cidade. Lá, o Hospital Geral de São Mateus, pertencente ao Sistema Único de Saúde (SUS), possui um Centro de Parto Natural (CPN), inaugurado em dezembro do ano passado. Nessa unidade, as enfermeiras obstétricas prestam assistência em suítes individuais, que garantem privacidade e segurança, pois têm à disposição todos os equipamentos necessários para cuidar da mãe e do bebê.
A criação de locais acolhedores em hospitais de regiões pobres das grandes cidades é uma conquista, na opinião de Teresa Sá Martins, enfermeira obstétrica e supervisora do CPN de São Mateus. Segundo ela, ali a gestante é incentivada a levar um acompanhante, que pode ficar a seu lado durante o trabalho de parto e o nascimento. Além disso, a mulher tem liberdade de movimentos, escolhe a posição mais confortável, se alimenta se tiver vontade e não precisa ficar recebendo soro. Pode, ainda, utilizar uma banheira de hidromassagem para relaxar nos intervalos entre as contrações.
No Centro de Parto Natural, como o próprio nome indica, as intervenções médicas só ocorrem quando surgem complicações. A filosofia é permitir que a mulher se sinta à vontade e deixe seu organismo agir livremente, sem uso de hormônios para acelerar o processo, sem cortes para facilitar a saída do bebê (a chamada episiotomia) e com a utilização de métodos alternativos de relaxamento.
Márcia, de 21 anos, que teve seu segundo filho em junho deste ano no CPN, declara: "Foi muito bom. As enfermeiras são cuidadosas, deixam comer e andar, não tiram o bebê de perto e também não colocam a gente no soro". Foi esse atendimento diferenciado que Helka Luciana de Azevedo, assistente de fotografia, de 31 anos, buscou na Casa de Parto de Sapopemba.
Diferentemente dos CPN, que ficam dentro de hospitais, as casas de parto tanto podem estar acopladas a um hospital como apenas ter um de referência, para onde são encaminhadas as gestantes que apresentam algum problema durante o trabalho de parto. Helka, no entanto, apesar de ter ficado satisfeita com o tratamento, tem uma queixa: "Bem que podiam ampliar o número de casas de parto, colocando uma em cada região da cidade".
"Hoje, há apenas cinco casas de parto funcionando a pleno vapor no país: a do Hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte; a de Juiz de Fora (MG); a Casa de Parto David Capistrano Filho, no Rio de Janeiro, e duas na cidade de São Paulo: a Casa de Maria e a Casa de Parto de Sapopemba", afirma Isa Paula Hamouche, técnica da área de saúde da mulher do Ministério da Saúde. E a principal razão apontada para a pequena quantidade de locais como esses é a falta de disposição dos governos estaduais e municipais.
Por essa razão, as que existem têm sido cada vez mais procuradas. A Casa de Parto David Capistrano Filho, no bairro de Realengo, na pobre região oeste da cidade do Rio de Janeiro, já atendeu a mais de 500 partos desde que foi inaugurada, em 8 de março de 2004. Como não é acoplada a um hospital, uma ambulância fica de plantão 24 horas por dia, para transportar gestantes que apresentem algum problema até a Maternidade Alexander Fleming, que fica a 8 quilômetros do local. Nesses casos, a equipe do hospital – onde também trabalham algumas das enfermeiras obstétricas da casa de parto – é imediatamente acionada.
Riscos
Além do atendimento em casas de parto e em centros de parto natural, as enfermeiras obstétricas (e também alguns médicos) prestam assistência em casa. Essa modalidade, no entanto, ainda é vista com cautela no Brasil. Em países como Holanda e Inglaterra, o parto domiciliar é incentivado, chegando, respectivamente, a 40% e 47% do total.
Para a socióloga e diretora da organização não-governamental Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), Jacqueline Pitanguy, dar à luz em casa não significa abrir mão do que a tecnologia pode oferecer. Se o bebê está bem posicionado e o pré-natal foi bem feito, não há problema.
A classe médica, em geral, se mostra contrária. "Pode-se fazer parto domiciliar? Sim, mas não se deve. Os riscos são raros, talvez de menos de 1%, mas quando surgem podem ser fatais para o bebê e até para a mãe. Mesmo com uma ambulância à disposição, numa cidade como São Paulo são muitas as variáveis. A mulher precisa saber que corre um risco", afirma Mario Macoto Kondo, diretor técnico do Centro Obstétrico do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP).
Nem todos, no entanto, vêem problema no fato de dar à luz fora do ambiente hospitalar. A começar pelo Ministério da Saúde: "É um direito da mulher escolher onde vai ter seu bebê. No mundo inteiro se discute o movimento de descentralização do atendimento ao parto e a saída desse procedimento da maternidade. Em alguns momentos, o aparato hospitalar pode até ser negativo para a mulher", afirma Isa Hamouche.
"O modelo que deve vingar é o que une a casa de parto – com assistência de enfermeiras obstétricas, ambiente familiar e privacidade – a um hospital, onde a total segurança também está garantida", enfatiza Aníbal Faúndes, coordenador de estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e pesquisador do Centro de Pesquisas Materno-Infantis de Campinas (Cemicamp).
De acordo com Simone Grilo Diniz, médica e professora do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da USP, embora o parto ainda seja descrito por muitos médicos como um evento de risco, as mais recentes evidências científicas mostram que, ao contrário, para mulheres que não apresentam problemas de saúde ou alterações durante a gravidez não há nenhum perigo. "O máximo que se puder fazer para não atrapalhar o processo fisiológico, melhor. Isso não significa que não se deva estar atento. A maioria das mulheres só precisa de vigilância – ver se mãe e bebê estão bem – e privacidade", declara.
Essa idéia também é defendida por quem presta assistência a partos domiciliares. "O ambiente acolhedor do lar facilita a liberação de oxitocina e de endorfina, hormônios necessários para que o parto aconteça de forma natural", argumenta Heloísa Lessa, enfermeira obstétrica que atua no Rio de Janeiro e membro da Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa).
Cláudia Orthof, médica e também membro da ReHuNa, trabalha em equipe com Heloísa e garante que nenhuma gestante que possa apresentar complicações terá o parto feito em casa. Por precaução, em todos os nascimentos um obstetra e um pediatra são contatados e ficam em alerta para qualquer eventualidade.
Para Vilma Nishi, enfermeira obstétrica que já realizou mais de 80 partos domiciliares na cidade de São Paulo, o maior problema é a mulher não admitir fraquejar. "Quando combino de atender um parto em casa, já aviso à futura mãe: se eu disser ‘agora é hora de ir para o hospital’, não há por que discutir. Nunca tive de sair correndo, mas há casos em que a gestante apresenta algum bloqueio ou se sente insegura. Nessas circunstâncias, vamos para um hospital." Por via das dúvidas, Vilma mantém um esquema de referência montado. Como a maioria das mulheres que atende possui plano de saúde, orienta as gestantes para que façam o pré-natal com ela e também com um médico do convênio. "Se for preciso ir para o hospital, haverá alguém para – como elas dizem – ajudar no ‘plano B’", declara.
Heloísa completa que ter um esquema de referência por perto é fundamental: "Se estou a três horas de um hospital, o risco de atender em casa pode ser grande. Mas, se puder chegar lá em cinco minutos, não há problema. O parto domiciliar é seguro, desde que os limites sejam respeitados".
Convergência
Um ponto a respeito do qual todos concordam é a necessidade de melhorar o pré-natal, para evitar que complicações imprevistas atrapalhem o andamento do trabalho de parto em mulheres saudáveis e sem alterações. "Uma coisa que pesa muito é o vínculo que se estabelece durante o período de gravidez. O pré-natal, na minha opinião, tem de ser feito de 15 em 15 dias, com pelo menos uma hora e meia de consulta. Quando se procede dessa maneira, trabalhando todas as questões envolvidas, a opção pelo parto domiciliar é praticamente uma conseqüência", afirma Heloísa.
"A questão mais importante é o preparo da paciente, que muitas vezes não acontece de forma adequada. Num pré-natal bem-feito, é possível identificar fatores que podem levar a riscos no trabalho de parto. Mas, de modo geral, o enfoque é muito tecnicista, e a dimensão humana acaba sendo deixada de lado. Essa é uma deficiência, hoje, em obstetrícia. O médico faz exames brilhantes e se esquece do aspecto emocional", declara Mario Kondo.
A convergência entre as duas classes, entretanto, se resume praticamente ao pré-natal. Em 2004, por exemplo, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) tentou impedir, sem sucesso, o funcionamento da Casa de Parto David Capistrano Filho, e entrou com uma ação na Justiça que pedia o fechamento da instituição.
Algumas décadas atrás, o antagonismo não era tão acentuado. Até 1970, as parteiras profissionais eram formadas na faculdade de medicina, no curso de obstetrícia, e trabalhavam em conjunto com os médicos. A partir de meados desse ano, porém, quando a profissão se tornou uma especialização da enfermagem e houve a proliferação dos planos de saúde, os conflitos hierárquicos passaram a ser constantes. "Acaba então a parceria que existia nas clínicas particulares. Um fator relevante foi a má remuneração feita pelos convênios, que incentivou os médicos a aumentar o número de gestantes que atendiam, dando preferência à cesárea – prática na qual enfermeiras obstétricas não podem atuar. No fim da década de 1980, a rivalidade entre as classes já era extremamente crítica", esclarece Dulce Gualda, coordenadora do curso de obstetrícia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP Leste, que, criado em 2005, trouxe de volta a possibilidade de formação universitária de parteiras profissionais.
"Hoje, há muitas mulheres morrendo de causas evitáveis no Brasil, e isso é bastante grave. Os médicos, de maneira geral, não confiam nas enfermeiras obstétricas para a assistência a gestantes de baixo risco, mas como confiar na classe médica como um todo se o índice de mortalidade materna é absurdo?", questiona Heloísa.
Mortalidade materna
É realmente impressionante: 75 brasileiras, em cada grupo de 100 mil mulheres, morrem por complicações do parto ou durante a gravidez. As estimativas, entretanto, são de que esse número chegue a 130, se forem considerados os casos em que a morte não é registrada como decorrência de complicações durante ou após o parto. Em países desenvolvidos, como a Inglaterra, são cerca de dez mortes por 100 mil.
Em parte, o índice de mortalidade materna se deve à elevada taxa de cesáreas no país, que ultrapassa os 15% recomendados pela OMS. As estatísticas falam por si mesmas: no Brasil, pouco mais de 3% das grávidas têm seus bebês em casas de parto ou na própria residência. Entre as que dão à luz no ambiente hospitalar, o parto natural também não é o preferido: de acordo com o Ministério da Saúde, 39,71% fazem cesáreas no sistema público de saúde e, nos hospitais particulares, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), esse percentual sobe para 79,7%.
Esses dados – alarmantes – colocam o Brasil na posição de vice-líder mundial em número de cesáreas, atrás apenas do Chile. "Esse tipo de parto eleva o risco de infecções, de hemorragia e até de a mulher precisar retirar o útero", alerta Aníbal Faúndes. Além de aumentar as probabilidades de complicações graves como essas, e ainda de pneumonia e septicemia, a cesárea traz, para cerca de um terço das mães, problemas como febre, hematoma, infecção no trato urinário ou no útero, ferida cirúrgica e paralisia do intestino ou da bexiga.
"A comparação entre bebês nascidos de cesáreas por razões não-médicas e os de partos vaginais também comprova que, no primeiro caso, é quase cinco vezes maior o risco de haver necessidade de cuidados intensivos ou semi-intensivos, ou ainda de assistência respiratória", alerta Simone.
Além disso, deve-se considerar que há diversos procedimentos médicos invasivos realizados rotineiramente no ambiente hospitalar, como raspagem de pêlos, lavagem intestinal, uso de soro e de hormônios para acelerar o processo, episiotomia e jejum, entre outros. "A maioria dessas intervenções é imposta, ou seja, a mulher nem é consultada. Tudo isso acabou por transformar o parto natural que acontece em hospital em uma coisa horrenda, levando muitas grávidas a optar pela cesárea, por acreditar que é menos dolorida", lamenta Simone.
A perspectiva é que as mudanças iniciadas no modelo de assistência ao parto no Brasil se consolidem lentamente, graças, inclusive, à reabertura do curso de obstetrícia destinado à formação de parteiras profissionais. De acordo com Dulce Gualda, os alunos da EACH (também há homens na graduação: de 60 matriculados, oito são do sexo masculino) recebem "uma visão de parto num contexto mais amplo, de cultura, de sociedade, de envolvimento político, de transformação do sistema. É um curso que começa com a saúde e depois entra na doença, diferentemente do enfoque tradicional, que tende a se fixar nesta última". A absorção desses profissionais no mercado de trabalho ainda é, contudo, uma incógnita.
FONTE: Problemas Brasileiros
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