A parteira como água


escrito por: Tricia em quinta-feira, outubro 19, 2006 às 4:40 PM.


Anna Basevi**

2004

Numa casa de campo, no sul do México, vive Naoli Vinaver, 38 anos, com seu companheiro e seus três filhos que ali nasceram. O terceiro parto, de uma menina, foi gravado e editado num vídeo: “Dia de Nacimiento” (produzido por Sage Femme – www.homebirthvideos.com). Como as poucas mulheres que resolveram dar à luz sem intervenções nem auxílio médico, ela foi literalmente e totalmente parteira de si mesma.

Mas, no dia a dia, Naoli é parteira profissional, assistindo as mulheres no domicílio, há 15 anos, desde que começou o aprendizado com as parteiras tradicionais que ainda atuam na realidade rural mexicana. Dos 500 partos aos quais assistiu, com uma média atual de 40 por ano, remunerados de acordo com a faixa social de cada mulher, a metade é de mulheres camponesas, uma parte de estudantes universitárias, e o restante de mulheres urbanas de classe médio-alta que resolvem fazer à experiência do parto domiciliar.

Um aprendizado tradicional, uma mulher moderna

Esta mulher que, para falar do parto sente necessidade, antes de tudo, de falar da vida, representa uma verdadeira ponte entre a sabedoria antiga e a vida moderna, porque possui uma trajetória inédita. Ela é de família etnicamente e culturalmente misturada: os pais intelectuais optaram pela vida no campo, ela se formou em antropologia, com una tese sobre dança, tema que foi aprofundar com uma bolsa de estudo no Congo. Ao regressar, começou a se interessar pelas experiências de parto (que, até então, conhecia de perto somente entre os animais), procurou livros e informações e as parteiras tradicionais. Foi justamente com elas que aprendeu e se desenvolveu profissionalmente, sem passar por um treinamento de enfermagem ou obstetrícia tradicionais. Enfim, aprofundou sua formação numa escola de parteiras situada na fronteira entre México e os EUA, ao mesmo tempo em que continuou seu percurso de leituras e troca de informações sempre envolvendo o saber das parteiras camponesas.

Ela se considera uma ponte de informações entre as mulheres do campo e as mulheres da cidade, comparando-se a uma borboleta que passando de flor em flor e se torna um meio de trocas e comunicação.

Hoje em dia, dedica parte de seu tempo à divulgação e resgate do trabalho das parteiras, atua do Midwifery Today, em parceria com nomes de destaque como o do doutor Michel Odent, e o da antropóloga Robbie Davis-Floyd, além de outras parteiras engajadas vindo de paises diferentes.

No Brasil

Com essa mesma finalidade ela veio ao Brasil algumas vezes. A primeira vez, em 2003, coordenou duas oficinas no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, e no Rio de Janeiro contou sua experiência profissional e de vida, aceitando o convite de Heloisa Lessa (enfermeira obstetra) e do Núcleo de Pesquisa em Enfermagem na Saúde da Mulher da Abenfo (Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras - entdidade encarregada de fornecer pareceres técnicos sobre ensino, assessorar cursos de atualização e ministrar diretamente cursos para enfermeiras obstetras e neonatais). Em 2004, participou: em maio, como uma das principais conferencistas, ao II Congresso Ecologia do Parto e do Nascimento (acontecido na UERJ); em setembro, ao Encontro Nacional de Parteiras tradicionais na Bahia. Ainda a esperamos em novembro para mais palestras no Rio e em São Paulo.

O conhecimento intuitivo: a Natureza como guia

A humanidade, lembra Naoli, na primeira parte de sua palestra “A intuição e o parto”, surgiu sem tecnologia, e, se não faz nenhum sentido hoje negá-la, é importante frisar sua interferência excessiva e muitas vezes prejudicial. Seria mais saudável considerar a tecnologia um auxílio possível e não o dogma de uma nova religião. Questionar a ilusão de conhecimento absoluto que através dela se pretende oferecer significa também se conscientizar da impossibilidade de garantir absolutamente a vida pelo uso da ciência.

O conceito de intuição carrega em si etiquetas que não fazem jus ao seu verdadeiro sentido, assim como o conceito de “primitivo”. No lugar deste, Naoli prefere usar o conceito de “originário”. Rumo às nossas origens de mamíferos, deve-se devolver o parto (hoje em dia, nas mãos do sistema médico) à comunidade humana e principalmente às mulheres, resgatando a capacidade originária de parir e de assistir a um parto, deixando que a Natureza seja o guia principal deste evento. Por isso, sem chegar a propô-lo como definição oficial (já que atualmente o discurso se situa sob o título de “parto humanizado”), ela sugere que se assuma interiormente a idéia de um parto “animalizado”.

As parteiras tradicionais são consideradas “pouco preparadas” numa comparação estereotipada com os profissionais de saúde, única referência para medir o conhecimento.

Mas o que é tradição?

Há quanto tempo, dentro da longa história humana, se corta o cordão antecipadamente? Há 50 anos? Há quanto tempo a mulher é colocada na posição deitada? Um século, dois, três? Há quanto tempo, se usa a ocitocina artificial? Há quanto a episiotomia tornou-se rotina? Há quanto são os homens que fazem parto? E há quanto tempo lemos livros escritos por homens sobre os sentimentos das mulheres, a sexualidade e o parto?

O que seria a INTUIÇÃO?

Naoli propõe estas perguntas para a reflexão e também conta casos, episódios, nos traz exemplos concretos, vividos, desde sua infância até o trabalho de parteira ao longo destes anos e conclui: há momentos de compreensão profunda, onde temos a sensação nítida de saber como agir, ou em que agimos da maneira certa seguindo uma voz interior que nos guia e dá proteção; a intuição seria o momento em que o conhecimento se une ao originário.

A vivência no parto como na sexualidade

Ao começar a segunda parte da palestra, “A sexualidade e o parto”, Naoli pediu para que as ouvintes dissessem o que segundo elas a sexualidade abrange e implica para que seja bem vivida. As respostas foram várias e o perfil da sexualidade que surgiu foi os seguintes: desejo, relaxamento, liberdade de expressar-se, reciprocidade, respeito dos próprios ritmos, carinho, espontaneidade.... Ela observou como os elementos necessários ao desenvolvimento de uma sexualidade satisfatória são os mesmos que devem estar presentes durante o processo do trabalho de parto, que tem o parto como momento culminante, assim como seria o orgasmo na sexualidade.

O relaxamento no trabalho de parto é fundamental; depende, porém, de diversos fatores: desde do local escolhido, às pessoas envolvidas, ao relaxamento da boca e da mandíbula (a própria Naoli contou que no trabalho de parto de um de seus filhos sentia a necessidade de relaxar a boca toda e espontaneamente dirigia-se para o que percebia ser sua única solução, ou seja, colocar sua língua na boca de seu homem a cada contração), à intuição da parteira de encontrar a chave emocional certa para que a mulher permita a abertura – às vezes amparando fisicamente a mulher, outras recuando para deixá-la concentrada em si mesma, ou criando um espaço físico-emocional apropriado e comum, ou então saindo do espaço da mulher para só observar.

A identidade da mulher, na hora das contrações se torna imprevisível, mas totalmente verdadeira se ela se permitir estar dentro de si e expressar sua natureza de animal, instintiva, selvagem, livre. E por isso, sempre repleta de beleza.
E a parteira, por sua vez, se despoja de autoridade e vaidade, de qualquer papel preestabelecido, para ser também uma mulher, um bicho, um ser natural seguindo seu saber interior, com os pés fincados no conhecimento adquirido na prática.

Atrás das palavras

A mulher, ou o homem, que se propõe a assistir e auxiliar num parto, inevitavelmente carrega consigo sua visão do corpo feminino e sua relação com a sexualidade. Numa sociedade onde estas questões ainda são mal resolvidas e o imaginário do corpo feminino e do parto são impregnados de negatividade, é inevitável que criem e se mantenham em vida termos e expressões que revelam os valores predominantes. Além do famoso “quem fez seu parto?” ou “eu fiz o parto dela”, que remete à passividade da mulher e ao protagonismo do/a médico/a (expressões que é muito difícil transformar), há toda uma terminologia que cotidianamente escolhemos; todos nós somos responsáveis pelo uso e efeito das palavras.

O sexo feminino, por exemplo, possui muitos apelidos infantis, apelidos vulgares, ou denominações frias e desumanas, tais como “canal de parto” no jargão médico. A própria palavra “vagina”, afirma Naoli, não corresponde à beleza e à importância que a natureza deu ao órgão sexual feminino. Uma atitude questionada pelas ouvintes foi a definição técnica “produto”, para dizer “criança”.

No mundo inteiro, as parteiras tradicionais, apesar de possuir o calor, interesse, intuição e competência adequados, vêm sendo marginalizadas, desconsideradas e até discriminadas. No México, as crianças no campo, ao encontrá-las, as chamam de “vuelas” (vovós), mas elas evitam aparecer no hospital quando resolvem levar as parturientes com complicações graves para serem atendidas. E, no entanto, seria de grande utilidade que elas pudessem expor o próprio conhecimento e entendimento dos fatos, além dos detalhes e do histórico daquele caso, para que os médicos e as enfermeiras possam se orientarem melhor.

A competência das parteiras, não diz respeito somente ao apoio emocional e ao entendimento sutil da energia interior, como também das questões e problemáticas fisiológicas consideradas motivos para cesarianas ou intervenções médicas. Um circular de cordão ou um bebê pélvico são situações que podem ser resolvidas por elas com bastante tranqüilidade, assim como a espera até a 42ª semana não precisa tornar-se um motivo de ansiedade. Por outro lado, elas possuem a consciência e a capacidade de reconhecer o perigo de um batimento cardíaco baixo e levar as mulheres no hospital em casos de real necessidade.

Naoli nos conta que em 500 partos que ela assistiu, recorreu à episiotomia somente duas vezes.

Entretanto, no meio de uma humanidade que paga pela civilização com a perda da criatividade, da autonomia e da confiança no conhecimento interior, as parteiras são consideradas “mão suja”.

A viagem de duas mulheres

Entretanto, a parteira, que não tem as influências prejudiciais da formação institucionalizada (por ter aprendido com outras parteiras ou, no caso de parteiras “modernas”, por redefinir o próprio papel de enfermeira ou obstetra) parece representar, hoje, uma figura de vanguarda, unindo em si o máximo respeito para com o processo do trabalho de parto junto à capacidade de intuir as necessidades sutis e profundas da mulher, sabendo o tipo de toque, de contato, de palavra ou de silêncio que pode resguardar a energia mais sagrada e íntima, permitindo-lhe expressar sua individualidade, dando-lhe o máximo crédito na hora de seu parto. À mulher é devolvida sua autoridade: naquele momento, é ela quem faz o parto. A parteira observa, cria as condições necessárias, ajuda com exercícios, sugestões ou manobras se for preciso, mas sempre respeitando a conexão da mulher com seu próprio instinto. É por isso que Naoli compara a parteira à água: uma presença capaz de se transformar e adquirir a forma que a mulher necessita e que seu processo de parto indica.

Naoli resgata todo o valor de ser parteira, explicando que a maior dádiva neste trabalho, longe de ser a recompensa em dinheiro, é a oportunidade de participar de um momento de “desnudez” da mulher, com um alto potencial de descoberta, de força, de abertura. A cada vez, ela se sente envolvida numa viagem imprevista onde a paisagem sempre surge diferente. E ela, a parteira, com a experiência de outras 500 viagens, acompanha a mulher, nunca por trás, nem sequer na frente, mas caminhando ao seu lado, descobrindo juntas um novo mundo, explorando as possibilidades da natureza humana.

Naoli encerra seu intenso depoimento, que muitas vezes semeia emoções e nunca deixa espaços vazios ou de cansaço, com o vídeo de seu terceiro parto: uma menina vindo ao mundo numa banheira de azulejos azuis, no meio do campo próximo à Xalapa, na região de Vera Cruz, recebida pela mãe, o pai, os irmãozinhos, no final todos imergidos na água.

Desta vez, Naoli deixa de ser água para outra mulher e mergulha dentro do elemento primário e dentro de si para encontrar-se com o que nela sabe seguir o caminho originário, com aquilo que sabe cumprir a viagem transformadora do parto quando nascem, como ela mesma conclui no filme, uma criança, um novo equilíbrio familiar, uma nova mulher.

* Relato do discurso de Naolí Vinaver na sede da Abenfo: “A intuição e a sexualidade no Parto e no Nascimento” 31/01/ 2003, Rio de Janeiro

** Anna Basevi é professora de italiano no Rio, em formação em Antiginástica - Thérèse Bertherat. Está engajada no movimento pela humanização do parto e faz parte do grupo de apoio Amigas do Peito. Participou do projeto “Amigas da Luz” para o treinamento de doulas, em 2002. Teve dois filhos, o primeiro nascido de cesárea e a segunda de parto normal, seus relatos foram publicados no livro “Mulheres contam o parto” (SP, Ed. Itália Nova, 2003).


FONTE: ONG Amigas do Parto

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Tricia Cavalcante: Doula na Tradição, formada pela ONG Cais do Parto, mãe de três, e doula pós-parto.Moro em Fortaleza-CE.


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