O Treinamento Formal de Parteiras: Algumas iniciativas
escrito por: Tricia em quinta-feira, novembro 23, 2006 às 6:18 PM.
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“ Formal training of midwives: some initiatives”
RESUMO
Este artigo tem como objetivo apresentar alguns exemplos de iniciativas de formalização do saber das parteiras feitas pelos Estados nacionais, de instituições religiosas e por ações da classe médica organizada em grupos.O método utilizado neste estudo é o da História Social, tendo como fonte trabalhos historiográficos sobre o tema do saber das parteiras. A análise destes textos leva a conclusão de que o objetivo dos treinamentos era a elevação de status do (a) praticante e a regulação da parturição sob o controle do saber médico acadêmico.
Palavra-chaves: Parteiras tradicionais, treinamento formal, saber médico.
ABSTRACT
This article has as an objective present some examples of initiative of the knowing formalization from midwives made by the national states or by actions from the medical class organized in groups. Social History is the method used in this study, having as source historiographic works about the midwives´ knowing theme. The analysis of these texts takes the conclusion that the training´s objective was the
practicing´s elevation of status and the regulamentation of the normal parturition under controle of the academic medical knowing.
Key-words: Midwives, midwives´ knowing, regulamentation of parturition.
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Durante séculos, as mulheres contaram na hora do parto com ajuda de outras mulheres, ou mesmo passavam por esta experiência de forma solitária. O evento do parto estava ainda envolto de mistérios e tabu. Ao longo dos tempos algumas mulheres ficaram conhecidas pela sua habilidade em ajudar as parturientes e ampará-las neste momento delicado. Por este motivo, elas destacaram-se socialmente. Sendo assim, passaram a ser requisitadas em preferência a outras pessoas para acompanhar as mães em trabalho de parto. Desta forma, surge a especialização de uma prática: a parturição e com ela as parteiras. Tendo em vista o caráter informal do inicio da prática da assistência ao parto, este texto apresenta algumas iniciativas de formalizar a prática das parteiras, através da padronização do seu saber, seja pela exigência de exames teóricos e ou práticos para a obtenção de licença, seja pela instituição de cursos, escolas ou treinamentos exigidos e impostos pela autoridade dos médicos ou da Igreja e com o apoio do Estado através da força da lei.
Veremos então, que nem sempre tais iniciativas surtiam os efeitos esperados por seus
idealizadores e que uma efetiva regulação da prática das parteiras, uniformizando o treinamento para todas, era uma tarefa que necessitava de transformações na mentalidade das autoridades envolvidas, da clientela e das próprias parteiras, e que mesmo assim, foi de difícil realização.
Investigar os objetivos dos primeiros idealizadores de uma formalização dos conhecimentos utilizado por parteiras torna-se importante na medida em que possibilita entender as formas de intervenção no saber prático e tradicional destas mulheres pelo saber da medicina científica da época. Pesquisar estas iniciativas pode ajudar a compreender o papel exercido por elas, como parte de um conjunto de estratégias para delimitar e manter sob o controle dos médicos o campo da obstetrícia médica, o qual buscava se estabelecer em meio a outras especialidades da medicina como um ramo tão relevante para a sociedade quanto seus irmãos.
As primeiras iniciativas: As licenciadas e as examinadas.
Até o século XVI o cuidado das doenças femininas não despertava grande interesse aos
médicos. O parto era um ritual de mulheres, as quais eram atendidas por parteiras e por uma rede feminina de solidariedade. Sendo assim, as parteiras não contavam com nenhuma formação especializada, tendo apenas a própria experiência como referência (ROHDEN, 2001). É a partir do mesmo século que se iniciam as tentativas de regulamentação de suas atividades. Na Inglaterra se estabelece uma licença para as parteiras administrada pelas autoridades eclesiásticas anglicanas. A Igreja tinha como prioridade vigiar a conduta moral das parteiras e tê-las como exemplo de comportamento virtuoso. Na França as tentativas de regulação que ocorreram no século XVI também estavam mais sujeitas às iniciativas do clero apoiadas pelo poder real. A Igreja e Estado estavam interessados em lutar contra o aborto, o infanticídio e também contra o protestantismo. Os médicos franceses também vão se destacar por terem inaugurado a luta contra as parteiras. Porém, aceitar um médico à beira do leito da parturiente não se dava sem problemas. As parturientes, mesmo em casos de grande risco, por questões de recato, não se expunham ao atendimento masculino. Na Escócia inaugura-se o ensino de nível universitário para as parteiras em 1726 na Universidade de Edimburgo. Em Londres, na segunda metade do século proliferam as escolas privadas de parteiros, homens e mulheres. Contudo, é apenas em 1783 que o College of Physicians decide conceder uma licença em arte obstétrica, distinguindo os praticantes que se sujeitassem a um exame (ROHDEN,2001).
No Brasil colonial, as longas distâncias e a escassez de recursos, entre as mais variadas dificuldades, não estimulavam os médicos formados na Europa a virem aqui atuar. O que se encontrava com facilidade por estas terras eram os cirurgiões aprovados. A brevidade na formação destes praticantes também era característica das parteiras locais. Elas deveriam se submeter a um exame diante de uma banca formada por físicos e cirurgiões e uma parteira licenciada para a obtenção da carta que regularizava a atividade. Contudo, o que se dava na prática era a concessão de licença mediante apenas pagamento das taxas, pois a grande maioria não sabia ler e escrever Os médicos eram chamados apenas em último caso, quando havia grande risco para mãe e para a criança. Mesmo assim, o excesso de pudor fazia com que a solicitação de um praticante fosse bastante rara (ROHDEN, 2001).
Nas colônias britânicas na América, as primeiras tentativas de se regular a prática das parteiras ficaram a cargo das autoridades civis, já que a Igreja anglicana não estendeu sua supervisão episcopal até o novo mundo (DONEGAN, 1984). Apesar disto, as licenças e a legislação que regulava a prática da parturição continham muitas influências da versão britânica do controle episcopal. As parteiras eram as únicas que assistiam as parturientes, pois havia um forte tabu contra a presença de homens na cena do parto na Grã-Bretanha, e este traço cultural foi transportado para as colônias na América. Este quadro só veio ser questionado com os avanços das técnicas dentro do campo da obstetrícia médica e com o estabelecimento da disciplina de Obstetrícia nas escolas de medicina.(DONEGAN, 1984).
No Brasil: Os Cursos de Partos
Maria Lúcia Mott dedica em sua tese, sobre a primeira parteira formada pelo primeiro curso oficial para parteiras no Brasil (MOTT, 1998), um capítulo inteiro ao treinamento formal das parteiras durante o século XIX. De acordo com seu trabalho, os cursos de partos surgiram junto com as reformas1 do ensino da medicina e estavam sob o controle do saber médico acadêmico. Na reforma de 1832, que criou as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Bahia, previu-se a criação de um curso de Obstetrícia para mulheres, com duração de dois anos, sendo que as candidatas deveriam ter mais de dezesseis anos e a apresentar atestado de bons costumes expedido pelo Juiz de paz da freguesia onde esta residisse. O curso era ministrado pelo mesmo professor responsável pela cadeira de partos no curso de medicina.
A reforma que deu origem a este curso em particular foi elaborada pela Sociedade de
Medicina do Rio de Janeiro, e tinha como objetivo a normalização do ensino e do exercício da medicina no Brasil, “seus membros defendiam a uniformização do saber médico, uma medicina baseada na observação, sendo radicalmente contrários a outras formas ou propostas de cura” (MOTT, 1992).
Existiam também cursos livres que ajudaram a complementar a formação de parteiras e
parteiros. Contudo, a prática de assistência ao parto ainda era muito restrita aos alunos do sexo masculino e os atendimentos na enfermaria de partos da Santa Casa de Misericórdia eram poucos, impossibilitando a prática suficiente aos alunos e alunas. A própria Mme Durocher, a primeira parteira formada pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, participou destes cursos livres para melhorar seus conhecimentos em obstetrícia (MOTT, 1998). Entretanto, apenas as faculdades tinham o poder de conferir ao aluno que concluísse o curso o diploma que permitia o exercício da atividade da parturição em todo o território do Império.
Entretanto, foi muito baixa a freqüência feminina no curso destinado às mulheres na época. O número de parteiras formadas por este curso também foi igualmente baixo. Cem formadas em cem anos de existência (MOTT, 1998; PROGIANTI, 2001). Mott levanta algumas hipóteses para a falta de sucesso do curso de partos das Faculdades de Medicina. A primeira diz respeito à dificuldade representada pela proximidade dos dois sexos no ambiente da sala de aula. Segundo a autora, incompatível para os padrões da época. Depois, pelo menos em nível de discurso, as parteiras atendiam as parturientes para prestar-lhes auxílio na hora do parto. Não estava em jogo a remuneração da parteira. A autora diz que, analisando os pedidos de licença, ela encontrou a constante relação entre o ofício de parteira e os conceitos de vocação, missão e caridade. Desta forma, Mott (1992) questiona “se é possível alguém admitir que abraçou a profissão por questões pecuniárias e não humanitárias?” Ela acrescenta que aprender o ofício de parteira a partir dos ensinamentos de um profissional do sexo masculino, dentro de instituição dirigida por médicos, na qual a relação entre médico paciente é regida por uma ética particular, e ainda, admitir remuneração para a assistência ao parto apontam para evidências significativas de uma mudança de comportamento que não se dá com a simples criação de um curso de partos (MOTT, 1992).
Julyan Peard (1999) também trata da pouca procura pelos cursos de partos quando a autora discute as disputas entre os integrantes da escola tropicalista baiana e as parteiras leigas durante o século XIX em Salvador. Peard (1999) ressalta que apenas duas alunas concluíram o curso desde sua criação em 1832 até 1871, ano no qual o Professor Elias Pedrosa constatou o fato. Sendo que uma aluna morreu pouco tempo depois de terminar o curso e a outra nunca exerceu sua ocupação. Peard considera de fácil compreensão o fracasso do curso, já que era exigido das alunas saber ler e
escrever e “boas maneiras”, o que eliminava as possibilidades das mulheres que via de regra desempenhavam a função na Bahia. Outro motivo apontado pela autora, baseado nos registros de Pedrosa, é que estes cursos teriam poucos a oferecer, tendo em vista que não contemplava o ensino prático de atendimento ao parto. No capítulo onde Peard trata dos cursos, a autora dá mais ênfase às denúncias feitas pelos tropicalistas contra as parteiras e aos motivos pelos quais os médicos não tiveram sucesso em atuar de forma majoritária no atendimento às mulheres baianas. Um dos motivos diz respeito à rígida moral sexual, de distanciamento entre os indivíduos de sexos diferentes, imposta pelo sistema patriarcal, dessa maneira, dificultando o atendimento dos médicos às parturientes (PEARD, 1999).
Rohden apresenta a discussão sobre os primeiros cursos de parteira do ponto de vista da constituição da “medicina da mulher”2. Ou seja, o ensino da obstetrícia voltado para a formação do médico. Ela explica que a arte obstétrica era lecionada desde 1809 na Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro e a cadeira de partos, que constava do currículo das academias Médicas e Cirúrgicas do Rio de Janeiro e Bahia, é integrada definitivamente quando estas se transformam nas Faculdades de medicina, criadas em 1832 (ROHDEN, 2001). A cadeira de partos era a única dedicada especificamente ao corpo feminino dentro dos currículos das faculdades desde a criação das mesmas. E parecia que não despertava muita atenção. Os médicos se dedicavam muito mais a exercer sua autoridade na regulamentação da prática das parteiras. Em 1832 é criado o curso feminino para que elas aprendessem de acordo com os preceitos vigentes da ciência a maneira adequada de atender as mulheres no momento do parto e os primeiros cuidados com a criança (grifo meu). Seguindo o pensamento da autora, passou-se desde então, a propagar a idéia das parteiras com certificado concedido pelos médicos, tornando-as mais legitimas e requisitadas pelas famílias mais ricas. Contudo, concomitante à instauração dos cursos, chegaram ao Porto do Rio de Janeiro as parteiras estrangeiras, sobretudo as francesas, que trouxeram novas técnicas e prescrições. Muitas conseguem fama e prestígio, o que é pouco comum para as mulheres da época (ROHDEN, 2001).
A prática das parteiras passa a ser cada vez mais visada, exigindo das parteiras francesas que no país aportaram, assim como das brasileiras, um exame aplicado por médicos delegados para que o diploma de parteira fosse registrado na Câmara Municipal. Mesmo assim, continua a autora, o recurso a “comadre” ou “curiosa” mantinha-se como prática corriqueira (ROHDEN, 2001).
Rohden também fala de um projeto, o primeiro que se tem notícia, dedicado ao ensino e
prática da obstetrícia que previa a fundação de um hospital-maternidade. Ele é apresentado por Florêncio Stanislau de La Masson em 1832. Este projeto teve parecer favorável da Câmara dos Deputados, mas o relator nomeado para o caso, o professor da cadeira de partos, Júlio Xavier, vetou os planos de La Masson (ROHDEN, 2001). Contudo, a autora não menciona que o projeto de La Masson não se destinava apenas ao estabelecimento de uma maternidade–escola, mas que seu autor pretendia ali ensinar somente mulheres. Ou seja, um curso destinado a formar parteiras, que teria finalidades filantrópicas. Sendo assim, La Masson buscava recursos para custear seu projeto junto à Regência e aos governos das Províncias (MOTT, 1998).
O veto dado por Xavier, transformado em treze anos de silêncio sobre o projeto, foi justificado com o argumento de que La Masson não fazia parte do corpo acadêmico e não tenha diploma reconhecido no Brasil. E ainda, que o autor do projeto queria se colocar acima das Faculdades de Medicina, já que o curso iria fornecer diplomas e a lei previa que as únicas instituições autorizadas para isso seriam as faculdades do Rio de Janeiro e Bahia. Somando-se aos impedimentos anteriores, Xavier salienta a discordância com o fato de que o ingresso de alunos do sexo masculino era vetado (grifo meu). Para finalizar, o relator da comissão questiona a finalidade filantrópica do projeto. Visto que as alunas para estudarem teriam que pagar e as parturientes além de passarem pelo “vexame” de serem objeto de estudo, teriam também que pagar pelo atendimento (MOTT, 1998).
Outro curso foi organizado e levado acabo na província de Pernambuco, criado pela lei
Provincial de Pernambuco n º 87, art, 33 de 06/03/1840. A justificativa para a sua criação foi em função da dificuldade das alunas de Recife se deslocarem para Salvador e Rio de Janeiro. As aulas se iniciaram em julho de 1840 e eram ministradas por Simplicio Antonio Mavgnier. A matrícula era gratuita e as exigências eram semelhantes àquelas feitas pelas faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Bahia. No currículo estava previsto o ensino de arte obstétrica teórica e prática, compreendendo Anatomia, Fisiologia e moléstias provenientes do parto. Apesar de estar sujeito à inspeção do diretor do Liceu, o curso estava estabelecido fora de suas instalações, as aulas eram ministradas no Hospital Paraíso (MOTT, 1998).
Este curso também esbarrou em questões legais que inviabilizaram sua continuidade, pois apenas as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Bahia eram as únicas autorizadas a fornecer diplomas. O curso do Liceu também estava fornecendo diplomas e autorizando o exercício da profissão às alunas. Uma longa discussão se sucedeu entre as autoridades até que “através de uma carta confidencial do ministro de Estado dos Negócios de Império, ao presidente da província de Pernambuco, fica-se sabendo o que foi resolvido: as alunas da cadeira de Obstetrícia não deveriam ser matriculadas na Junta Central de Higiene, porém poderiam continuar a exercer o ofício sem serem perturbadas!” (MOTT, 1998).
Após a morte de Mavgnier, o curso entrou em declínio até que o governo perdeu o interesse por ele e o extinguiu (Maria Mott não conseguiu precisar a data de término). Em 1875 foi reaberto um curso de partos em Recife, no Hospital Pedro II. Consta que ainda no ano de 1884 o curso continuava funcionando regularmente, habilitando normalmente as alunas (MOTT, 1998).
Outras iniciativas: Estados Unidos
Um fator foi decisivo para as primeiras iniciativas nos Estados Unidos para a criação de cursos para parteiras: o desenvolvimento e consolidação do ramo da medicina dedicado a assistência à gestação e parto, ou seja, a obstetrícia. Igualmente decisiva foi a importância social que o médico começou a adquirir com o estabelecimento de terapêuticas mais eficazes. Conforme novas técnicas e instrumentais foram sendo desenvolvidas pelos obstetras, possibilitando a eles um maior sucesso e humanização nos atendimento aos partos difíceis, e desta forma, ampliando as possibilidades de atendimento aos partos normais; e com a gradual inclusão da cadeira de obstetrícia nos currículos das escolas médicas, fortaleceu-se a idéia de que os obstetras eram experts no assunto. O que nem sempre correspondia a realidade (DONEGAN, 1984). Sendo assim, a parteira tradicional negava com seu conhecimento prático e a grande maioria dos atendimentos com bons resultados, todo o arsenal tecnológico que os médicos desenvolveram no sentido de tornar o parto ditócico3 mais rápido e seguro. Outro aspecto fundamental para a iniciativa dos cursos, no que diz respeito à sociedade norte-americana, foi a transformação do evento do parto, tido como de natureza familiar e social, para um evento médico potencialmente patológico. Isto se deu através de um esforço de convencimento da clientela levado a cabo pelos médicos. Tal mudança passou a exigir o atendimento de um especialista que dispusesse de um conhecimento sofisticado e elaborado para o manuseio dos instrumentos (tais como o fórceps, o pelvímentro, o estetoscópio), para manter o andamento do trabalho de parto longe dos riscos potenciais. Ou seja, sob controle dos médicos (DONEGAN, 1984).
Se o parto não é mais um evento natural da vida da mulher e requisita conhecimentos especiais para mantê-lo dentro de padrões de segurança e riscos controlados, como atender às mulheres sem ofender a moral e a pureza feminina, expondo-as aos olhos e mãos masculinas? A resposta, para boa parte da classe médica, seria o treinamento de parteiras. A mesma atitude cultural que delimitou a mulher a “natural esfera doméstica” (apoiada pelo saber da medicina do período), e que fez pensar que uma verdadeira mulher não seria capaz de ser treinada para desempenhar uma atividade tão “delicada” sem ferir sua modéstia e virtude, preferiu treinar mulheres para atendimentos aos partos e evitar expô-las excessivamente às técnicas e aparelhos utilizados exclusivamente pelos obstetras. Não se tratou de uma verdadeira tendência de restaurar-se a parturição para a mulher com inspiração no movimento de direitos femininos (este buscava alargar as oportunidades de estudo e atividades profissionais para as mulheres). Mas sim, remover da sociedade o paradoxo criado pelo conflito das demandas de modéstia e segurança (DONEGAN, 1984).
Houve tentativas do governo colonial, e posteriormente, do estado nacional em implementar um Plano Continental para o estabelecimento de escolas onde as parteiras pudessem receber treinamento formal, embora sem sucesso. Também é verdade que todas iniciativas de organização de ensino para a formação de médicos, não recebiam auxílio governamental. O que surgem são escolas médicas de origem privada, as quais recebiam também mulheres para treinamento em Obstetrícia. O que significou muito mais o início do ingresso no ensino de nível superior em medicina para as mulheres, do que apenas o treinamento formal das parteiras já existentes (DONEGAN, 1984).
Mas, nem os críticos dos praticantes masculinos, nem os aliados da causa das mulheres
conseguiram restaurar a obstetrícia para a mulher. Apesar dos argumentos destes dois grupos chamassem a atenção para a incongruência da mulher gestante aceitar o serviço de um parteiro e ao mesmo tempo conseguir observar os ditames do rígido código de moral. Mesmo assim, aos poucos, após 1850, passou a ser costume entre as mulheres de classe-média e classe-alta chamar um médico para o atendimento dos partos, mesmo em casos normais. A idéia de progresso da ciência e a promessa de um parto rápido e seguro fizeram com que a solicitação de um doutor se tornasse cada vez mais comum entre as famílias de mais recursos nas grandes cidades do norte dos Estados Unidos (DONEGAN, 1984).
Nos anos iniciais do século XX, os serviços de uma parteira já tinham sido em boa parte substituídos pelos de um médico nas grandes cidades americanas. Sobretudo para aqueles que podiam pagar os honorários de um doutor. Contudo, nos locais mais istantes, desprovidos de recursos médicos e onde a população era pobre, a parteira era praticamente a única a prestar assistência ao parto. Ela também provia serviços médicos através de cuidados à mãe e ao recémnascido. Houve debates quanto à extinção ou não da prática das parteiras entre os membros da classe médica. Eles consideravam a atuação das parteiras como um problema de saúde pública, pois a idéia da grande responsabilidade das parteiras por contaminar as parturientes e os recém nascidos com infecções pós-parto, em função de sua falta de treinamento formal, ou seja, pelo desconhecimento de práticas higiênicas era constante. Tal idéia era compartilhada entre os doutores, seja qual for o lado em que estivessem os debatedores, a favor da manutenção ou simpatizantes do término da prática das parteiras (Kobrin, 1984).
Esta preocupação levou a alguns estados mais pobres dos Estados Unidos, como o Mississippi nas décadas iniciais do século XX, a criarem, dentro de seu Quadro Estatal de Saúde, programas para regular a prática das parteiras leigas. Estas, em grande número, atuavam em precárias condições. No Mississippi elas fizeram boa parte dos partos até 1940. Nas comunidades afro-americanas as parteiras realizaram 80% de todos os partos até aquela data. Com a instituição de um programa de treinamento para melhorar o atendimento dado pelas parteiras, houve a aproximação entre elas e as enfermeiras de Saúde Pública. As parteiras negras, conhecidas como “grannies”, foram muito atuantes nos programas do Quadro de Saúde Estatal, auxiliando na propagação dos hábitos de higiene e na realização de campanhas de vacinação entre a comunidade negra.
A importância social destas mulheres em suas comunidades fez com que elas se tornassem um corpo informal do Quadro de Saúde. O respeito e confiança que a população depositava nas parteiras, e o interesse das mesmas em promover melhores condições de saúde para suas comunidades, fez com que os oficiais do Quadro de Saúde modificassem sua opinião sobre as “grannies”, passando a ver estas mulheres como uma ajuda importante nos programas de Saúde Pública, um verdadeiro elo de ligação entre as ações do estado na área da saúde e as comunidades.
Elas não eram mais vistas então como um problema de Saúde Pública (SMITH, 1994).
O treinamento das parteiras ajudou muito a baixar as taxas de mortalidade materna e infantil. O programa compreendia reuniões mensais com leituras do Manual das Parteiras, inspeção do material usado no atendimento aos partos e exames rotineiros de saúde para que as parteiras não contaminassem as parturientes e bebês com alguma doença que por ventura pudessem ter contraído (SMITH, 1994).
Com o passar dos anos, as parteiras mais velhas foram sendo aposentadas pelo Quadro
Estatal de Saúde sem a reposição de outras em seus lugares. Aos poucos, os serviços de saúde nas áreas rurais do Mississippi foram sendo ampliados e a urbanização atingiu as áreas onde estas parteiras atuavam. O processo de urbanização acabou modificando os costumes e os modos de viver da clientela, a qual passou gradativamente a buscar um hospital para o atendimento aos partos. Em 1982 o estado do Mississippi tinha apenas 13 parteiras leigas registradas, desde muito tempo não se emitia novas permissões ou se mantinha sessões de treinamento (SMITH, 1994).
Considerações Finais
Diante dos exemplos de iniciativas aqui apresentados, podemos dizer que, quanto aos cursos das faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Bahia no século XIX, todos os autores apontam para a importância das constantes reformas de ensino destas instituições. Estas se concentraram principalmente nos requisitos necessários às candidatas para o ingresso. Progressivamente, exigiu-se formação educacional mais completa, assim como a limitação de idade privilegiou o ingresso de candidatas jovens. Outro aspecto restritivo era a exigência de atestado de boa conduta, que em um primeiro momento, deveria ser expedido pelo juiz de paz da freguesia de residência da candidata e posteriormente passou a se configurar como autorização do pai (ou quem estivesse em seu lugar).
No caso das casadas, era necessária a autorização dos maridos. Desta forma, os autores evidenciam constituição de um perfil desejado para a profissional a ser formada. Ao ingressar no curso de partos a futura parteira não precisaria possuir habilidade, experiência e conhecimentos anteriores aos obtidos no treinamento. A aluna ideal seria uma jovem sem tempo para contato com outras parteiras mais experientes, e principalmente, de uma camada social com recursos financeiros suficientes para proporcionar-lhes instrução escolar o bastante para cursar a cadeira de partos em uma faculdade de medicina. Todo conhecimento sobre a arte de partejar seria adquirido nos bancos escolares.
Um saber obstétrico acadêmico, produzido pela perspectiva científica do século XIX. O caráter do ensino, preponderantemente teórico e não prático, não estava apenas ligado à dificuldade de conseguir parturientes em número suficientes para suprir as necessidades do ensino prático do parto, que estivessem dispostas a se sujeitarem a serem objeto de estudo. É bem provável que, ao desvincular a atividade médica do antigo caráter “manual” e prático relacionando-a ao saber erudito por meio dos currículos destes cursos, purificou-a da marca das classes “baixas” que antes as exerciam e significou elevar a profissão médica em nível social dando aos iniciados um status diferenciado dos antigos cirurgiões e parteiras. Assim, seria mais adequado aos filhos das famílias mais aquinhoadas dedicarem-se a medicina sem reprovação.
É perceptível também o interesse de se delimitar prática da parturição a um grupo sócioeconômico distinto daquele que vinha até então o exercendo. As parteiras tradicionais eram oriundas das camadas populares, em sua grande maioria não tinham acesso ao ensino formal, sendo assim, muitas se quer sabiam ler e escrever, o que impedia o ingresso nos cursos. Estes, por força da lei, eram os únicos a estabelecimentos no Império autorizados a fornecer o diploma de parteira. Título obrigatório para o exercício da atividade. Ou seja, estes cursos não só estavam dando a formação, mas também eram parte das estratégias de regulação da prática parturição no país em termos oficiais.
Uma das queixas freqüentes nas denúncias feitas pelos médicos contra as parteiras, que endossaram as iniciativas de treinamento das mesmas, seria que as parteiras, diante de anormalidades no processo do parto, não pediam a tempo a presença de um cirurgião, tendo em vista que estas estavam limitadas ao atendimento de partos normais. Tal delimitação da prática das parteiras foi definida pelos médicos. Estes consideravam tal comportamento como conseqüência da ignorância das parteiras, por estas não saberem identificar o limite de sua prática. Desta forma, segundo os médicos, as parteiras colocavam em risco a vida daqueles que deveriam proteger. Outra queixa constante era de que as parteiras eram anti-higiênicas e através dos atendimentos sucessivos, sem o devido cuidado com a limpeza, transmitiam infecções puerperais.
Mesmo assim, com todos esses argumentos, os cursos de partos no Brasil, em suas
primeiras iniciativas não tiveram o êxito esperado por seus idealizadores. O costume de se recorrer à comadre continuou durante muito tempo, seja pelos custos dos serviços de uma parteira ou parteiro treinados, seja pela quase inexistente fiscalização da atuação das curiosas. Ou mesmo, em função da difundida prática do uso de manuais de medicina popular, os quais orientavam em caso de partos, o que fazer a quem soubesse ler e estivesse pronto a atender uma mulher em trabalho de parto.
Outro aspecto importante tinha relação com a origem social das candidatas ao curso. Moças com possibilidade de formação esmerada para época, sabendo ler, escrever, Inglês, Francês, Química e Física, além de História Natural, provavelmente teriam outros objetivos que a prática da parturição. E mesmo, é importante pensar se a família aceitaria tal destino para uma filha. Primeiro para se formar seria necessário estudar em proximidade com rapazes e homens, situação essa pouco aceitável na época. Outro aspecto importante, e que seria o mais esperado para as moças de boa formação no período, é que uma educação tão esmerada seria mais bem aplicada na educação e formação dos filhos.
Os aspectos da moral sexual foram também importantes motivações para a criação dos
cursos, tanto no Brasil como nos casos apresentados sobre os Estados Unidos. O excesso de pudor e recato fez com que durante muito tempo as mulheres, em ambas as sociedades, se recusassem a serem atendidas por médicos parteiros. Apenas, com um grande esforço por parte dos médicos para promover o convencimento da clientela das vantagens de se contratar um médico, é que aos poucos, o avanço dos obstetras no atendimento aos partos normais se deu mais regularmente. O auxilio do arsenal de novidades em termos de técnicas e instrumental e o maior domínio sobre a anatomia e fisiologia dos partos também contribuíram para desfazer a imagem perante a clientela de que o obstetra, muitas vezes, possuía menos capacidade no atendimento aos partos que a parteira.
Enfim, podemos dizer que para o sucesso das iniciativas aqui apresentadas foi fundamental a mudança das mentalidades sobre a natureza do evento do parto, da segurança que significava a utilização dos novos conhecimentos da Obstetrícia e de como estas modificações atuaram em uma reelaboração da imagem do obstetra perante a sociedade. Também se pode dizer que, no caso das parteiras do Mississippi, a mudança de opinião das autoridades de Saúde Pública, quanto à importância social destas mulheres, foi fundamental para a melhoria das condições de saúde da população e significou um melhor atendimento aos partos, sem necessariamente findar de uma só
vez com a prática das parteiras.
REFERÊNCIAS
DONEGAN, J. B. “Safe delirery, but by Whom? Midwivwes and Man-midwives in Early America” IN:
LEAVITT, J. W. (Editor) Women and Health in America: Historical Readings. University of Wisconsin
Press, 1984. pp 302-317.
MOTT, M ª L. de B. Parteiras no Século XIX: Mme. Durocher e sua época. In:COSTA, A. de O. &
BRUSCHINI, C. (org.) Entre a Virtude e o Pecado. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. pp. 37-
56.
__________.Partos , Parteiras e Parturientes: Mme. Durocher e sua época. 1998. Tese (Doutorado
em História Social) Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo. São Paulo.
KOBRIN, E. F. The American Midwife Controversy: A Crise of Profissionalization. In: LEAVITT, J. W.
(Editor) Women and Health in America: Historical Readings. University of Wisconsin Press, 1984. pp.
318-326
PEARD, J. “ Physicians and Women in Bahia” . In; Race, Place, and Medicine: The Idea of Tropics in
Nineteeth-Century Brazilian Medicine. Duke University Press, 1999, pp. 109-137.
ROHDEN, F. Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2001.224p.
SMITH, S. White nurses, black midwives, and Public Health in Mississippi, 1920- 1950. In: Leavitt, J.
(ed.) Women and Health in America, University of Wisconsin, 1999, 2nd edition, pp. 444-428.
FONTE: CAPES - Revista Eletronica "Espaço para Saúde"
RESUMO
Este artigo tem como objetivo apresentar alguns exemplos de iniciativas de formalização do saber das parteiras feitas pelos Estados nacionais, de instituições religiosas e por ações da classe médica organizada em grupos.O método utilizado neste estudo é o da História Social, tendo como fonte trabalhos historiográficos sobre o tema do saber das parteiras. A análise destes textos leva a conclusão de que o objetivo dos treinamentos era a elevação de status do (a) praticante e a regulação da parturição sob o controle do saber médico acadêmico.
Palavra-chaves: Parteiras tradicionais, treinamento formal, saber médico.
ABSTRACT
This article has as an objective present some examples of initiative of the knowing formalization from midwives made by the national states or by actions from the medical class organized in groups. Social History is the method used in this study, having as source historiographic works about the midwives´ knowing theme. The analysis of these texts takes the conclusion that the training´s objective was the
practicing´s elevation of status and the regulamentation of the normal parturition under controle of the academic medical knowing.
Key-words: Midwives, midwives´ knowing, regulamentation of parturition.
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Durante séculos, as mulheres contaram na hora do parto com ajuda de outras mulheres, ou mesmo passavam por esta experiência de forma solitária. O evento do parto estava ainda envolto de mistérios e tabu. Ao longo dos tempos algumas mulheres ficaram conhecidas pela sua habilidade em ajudar as parturientes e ampará-las neste momento delicado. Por este motivo, elas destacaram-se socialmente. Sendo assim, passaram a ser requisitadas em preferência a outras pessoas para acompanhar as mães em trabalho de parto. Desta forma, surge a especialização de uma prática: a parturição e com ela as parteiras. Tendo em vista o caráter informal do inicio da prática da assistência ao parto, este texto apresenta algumas iniciativas de formalizar a prática das parteiras, através da padronização do seu saber, seja pela exigência de exames teóricos e ou práticos para a obtenção de licença, seja pela instituição de cursos, escolas ou treinamentos exigidos e impostos pela autoridade dos médicos ou da Igreja e com o apoio do Estado através da força da lei.
Veremos então, que nem sempre tais iniciativas surtiam os efeitos esperados por seus
idealizadores e que uma efetiva regulação da prática das parteiras, uniformizando o treinamento para todas, era uma tarefa que necessitava de transformações na mentalidade das autoridades envolvidas, da clientela e das próprias parteiras, e que mesmo assim, foi de difícil realização.
Investigar os objetivos dos primeiros idealizadores de uma formalização dos conhecimentos utilizado por parteiras torna-se importante na medida em que possibilita entender as formas de intervenção no saber prático e tradicional destas mulheres pelo saber da medicina científica da época. Pesquisar estas iniciativas pode ajudar a compreender o papel exercido por elas, como parte de um conjunto de estratégias para delimitar e manter sob o controle dos médicos o campo da obstetrícia médica, o qual buscava se estabelecer em meio a outras especialidades da medicina como um ramo tão relevante para a sociedade quanto seus irmãos.
As primeiras iniciativas: As licenciadas e as examinadas.
Até o século XVI o cuidado das doenças femininas não despertava grande interesse aos
médicos. O parto era um ritual de mulheres, as quais eram atendidas por parteiras e por uma rede feminina de solidariedade. Sendo assim, as parteiras não contavam com nenhuma formação especializada, tendo apenas a própria experiência como referência (ROHDEN, 2001). É a partir do mesmo século que se iniciam as tentativas de regulamentação de suas atividades. Na Inglaterra se estabelece uma licença para as parteiras administrada pelas autoridades eclesiásticas anglicanas. A Igreja tinha como prioridade vigiar a conduta moral das parteiras e tê-las como exemplo de comportamento virtuoso. Na França as tentativas de regulação que ocorreram no século XVI também estavam mais sujeitas às iniciativas do clero apoiadas pelo poder real. A Igreja e Estado estavam interessados em lutar contra o aborto, o infanticídio e também contra o protestantismo. Os médicos franceses também vão se destacar por terem inaugurado a luta contra as parteiras. Porém, aceitar um médico à beira do leito da parturiente não se dava sem problemas. As parturientes, mesmo em casos de grande risco, por questões de recato, não se expunham ao atendimento masculino. Na Escócia inaugura-se o ensino de nível universitário para as parteiras em 1726 na Universidade de Edimburgo. Em Londres, na segunda metade do século proliferam as escolas privadas de parteiros, homens e mulheres. Contudo, é apenas em 1783 que o College of Physicians decide conceder uma licença em arte obstétrica, distinguindo os praticantes que se sujeitassem a um exame (ROHDEN,2001).
No Brasil colonial, as longas distâncias e a escassez de recursos, entre as mais variadas dificuldades, não estimulavam os médicos formados na Europa a virem aqui atuar. O que se encontrava com facilidade por estas terras eram os cirurgiões aprovados. A brevidade na formação destes praticantes também era característica das parteiras locais. Elas deveriam se submeter a um exame diante de uma banca formada por físicos e cirurgiões e uma parteira licenciada para a obtenção da carta que regularizava a atividade. Contudo, o que se dava na prática era a concessão de licença mediante apenas pagamento das taxas, pois a grande maioria não sabia ler e escrever Os médicos eram chamados apenas em último caso, quando havia grande risco para mãe e para a criança. Mesmo assim, o excesso de pudor fazia com que a solicitação de um praticante fosse bastante rara (ROHDEN, 2001).
Nas colônias britânicas na América, as primeiras tentativas de se regular a prática das parteiras ficaram a cargo das autoridades civis, já que a Igreja anglicana não estendeu sua supervisão episcopal até o novo mundo (DONEGAN, 1984). Apesar disto, as licenças e a legislação que regulava a prática da parturição continham muitas influências da versão britânica do controle episcopal. As parteiras eram as únicas que assistiam as parturientes, pois havia um forte tabu contra a presença de homens na cena do parto na Grã-Bretanha, e este traço cultural foi transportado para as colônias na América. Este quadro só veio ser questionado com os avanços das técnicas dentro do campo da obstetrícia médica e com o estabelecimento da disciplina de Obstetrícia nas escolas de medicina.(DONEGAN, 1984).
No Brasil: Os Cursos de Partos
Maria Lúcia Mott dedica em sua tese, sobre a primeira parteira formada pelo primeiro curso oficial para parteiras no Brasil (MOTT, 1998), um capítulo inteiro ao treinamento formal das parteiras durante o século XIX. De acordo com seu trabalho, os cursos de partos surgiram junto com as reformas1 do ensino da medicina e estavam sob o controle do saber médico acadêmico. Na reforma de 1832, que criou as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Bahia, previu-se a criação de um curso de Obstetrícia para mulheres, com duração de dois anos, sendo que as candidatas deveriam ter mais de dezesseis anos e a apresentar atestado de bons costumes expedido pelo Juiz de paz da freguesia onde esta residisse. O curso era ministrado pelo mesmo professor responsável pela cadeira de partos no curso de medicina.
A reforma que deu origem a este curso em particular foi elaborada pela Sociedade de
Medicina do Rio de Janeiro, e tinha como objetivo a normalização do ensino e do exercício da medicina no Brasil, “seus membros defendiam a uniformização do saber médico, uma medicina baseada na observação, sendo radicalmente contrários a outras formas ou propostas de cura” (MOTT, 1992).
Existiam também cursos livres que ajudaram a complementar a formação de parteiras e
parteiros. Contudo, a prática de assistência ao parto ainda era muito restrita aos alunos do sexo masculino e os atendimentos na enfermaria de partos da Santa Casa de Misericórdia eram poucos, impossibilitando a prática suficiente aos alunos e alunas. A própria Mme Durocher, a primeira parteira formada pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, participou destes cursos livres para melhorar seus conhecimentos em obstetrícia (MOTT, 1998). Entretanto, apenas as faculdades tinham o poder de conferir ao aluno que concluísse o curso o diploma que permitia o exercício da atividade da parturição em todo o território do Império.
Entretanto, foi muito baixa a freqüência feminina no curso destinado às mulheres na época. O número de parteiras formadas por este curso também foi igualmente baixo. Cem formadas em cem anos de existência (MOTT, 1998; PROGIANTI, 2001). Mott levanta algumas hipóteses para a falta de sucesso do curso de partos das Faculdades de Medicina. A primeira diz respeito à dificuldade representada pela proximidade dos dois sexos no ambiente da sala de aula. Segundo a autora, incompatível para os padrões da época. Depois, pelo menos em nível de discurso, as parteiras atendiam as parturientes para prestar-lhes auxílio na hora do parto. Não estava em jogo a remuneração da parteira. A autora diz que, analisando os pedidos de licença, ela encontrou a constante relação entre o ofício de parteira e os conceitos de vocação, missão e caridade. Desta forma, Mott (1992) questiona “se é possível alguém admitir que abraçou a profissão por questões pecuniárias e não humanitárias?” Ela acrescenta que aprender o ofício de parteira a partir dos ensinamentos de um profissional do sexo masculino, dentro de instituição dirigida por médicos, na qual a relação entre médico paciente é regida por uma ética particular, e ainda, admitir remuneração para a assistência ao parto apontam para evidências significativas de uma mudança de comportamento que não se dá com a simples criação de um curso de partos (MOTT, 1992).
Julyan Peard (1999) também trata da pouca procura pelos cursos de partos quando a autora discute as disputas entre os integrantes da escola tropicalista baiana e as parteiras leigas durante o século XIX em Salvador. Peard (1999) ressalta que apenas duas alunas concluíram o curso desde sua criação em 1832 até 1871, ano no qual o Professor Elias Pedrosa constatou o fato. Sendo que uma aluna morreu pouco tempo depois de terminar o curso e a outra nunca exerceu sua ocupação. Peard considera de fácil compreensão o fracasso do curso, já que era exigido das alunas saber ler e
escrever e “boas maneiras”, o que eliminava as possibilidades das mulheres que via de regra desempenhavam a função na Bahia. Outro motivo apontado pela autora, baseado nos registros de Pedrosa, é que estes cursos teriam poucos a oferecer, tendo em vista que não contemplava o ensino prático de atendimento ao parto. No capítulo onde Peard trata dos cursos, a autora dá mais ênfase às denúncias feitas pelos tropicalistas contra as parteiras e aos motivos pelos quais os médicos não tiveram sucesso em atuar de forma majoritária no atendimento às mulheres baianas. Um dos motivos diz respeito à rígida moral sexual, de distanciamento entre os indivíduos de sexos diferentes, imposta pelo sistema patriarcal, dessa maneira, dificultando o atendimento dos médicos às parturientes (PEARD, 1999).
Rohden apresenta a discussão sobre os primeiros cursos de parteira do ponto de vista da constituição da “medicina da mulher”2. Ou seja, o ensino da obstetrícia voltado para a formação do médico. Ela explica que a arte obstétrica era lecionada desde 1809 na Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro e a cadeira de partos, que constava do currículo das academias Médicas e Cirúrgicas do Rio de Janeiro e Bahia, é integrada definitivamente quando estas se transformam nas Faculdades de medicina, criadas em 1832 (ROHDEN, 2001). A cadeira de partos era a única dedicada especificamente ao corpo feminino dentro dos currículos das faculdades desde a criação das mesmas. E parecia que não despertava muita atenção. Os médicos se dedicavam muito mais a exercer sua autoridade na regulamentação da prática das parteiras. Em 1832 é criado o curso feminino para que elas aprendessem de acordo com os preceitos vigentes da ciência a maneira adequada de atender as mulheres no momento do parto e os primeiros cuidados com a criança (grifo meu). Seguindo o pensamento da autora, passou-se desde então, a propagar a idéia das parteiras com certificado concedido pelos médicos, tornando-as mais legitimas e requisitadas pelas famílias mais ricas. Contudo, concomitante à instauração dos cursos, chegaram ao Porto do Rio de Janeiro as parteiras estrangeiras, sobretudo as francesas, que trouxeram novas técnicas e prescrições. Muitas conseguem fama e prestígio, o que é pouco comum para as mulheres da época (ROHDEN, 2001).
A prática das parteiras passa a ser cada vez mais visada, exigindo das parteiras francesas que no país aportaram, assim como das brasileiras, um exame aplicado por médicos delegados para que o diploma de parteira fosse registrado na Câmara Municipal. Mesmo assim, continua a autora, o recurso a “comadre” ou “curiosa” mantinha-se como prática corriqueira (ROHDEN, 2001).
Rohden também fala de um projeto, o primeiro que se tem notícia, dedicado ao ensino e
prática da obstetrícia que previa a fundação de um hospital-maternidade. Ele é apresentado por Florêncio Stanislau de La Masson em 1832. Este projeto teve parecer favorável da Câmara dos Deputados, mas o relator nomeado para o caso, o professor da cadeira de partos, Júlio Xavier, vetou os planos de La Masson (ROHDEN, 2001). Contudo, a autora não menciona que o projeto de La Masson não se destinava apenas ao estabelecimento de uma maternidade–escola, mas que seu autor pretendia ali ensinar somente mulheres. Ou seja, um curso destinado a formar parteiras, que teria finalidades filantrópicas. Sendo assim, La Masson buscava recursos para custear seu projeto junto à Regência e aos governos das Províncias (MOTT, 1998).
O veto dado por Xavier, transformado em treze anos de silêncio sobre o projeto, foi justificado com o argumento de que La Masson não fazia parte do corpo acadêmico e não tenha diploma reconhecido no Brasil. E ainda, que o autor do projeto queria se colocar acima das Faculdades de Medicina, já que o curso iria fornecer diplomas e a lei previa que as únicas instituições autorizadas para isso seriam as faculdades do Rio de Janeiro e Bahia. Somando-se aos impedimentos anteriores, Xavier salienta a discordância com o fato de que o ingresso de alunos do sexo masculino era vetado (grifo meu). Para finalizar, o relator da comissão questiona a finalidade filantrópica do projeto. Visto que as alunas para estudarem teriam que pagar e as parturientes além de passarem pelo “vexame” de serem objeto de estudo, teriam também que pagar pelo atendimento (MOTT, 1998).
Outro curso foi organizado e levado acabo na província de Pernambuco, criado pela lei
Provincial de Pernambuco n º 87, art, 33 de 06/03/1840. A justificativa para a sua criação foi em função da dificuldade das alunas de Recife se deslocarem para Salvador e Rio de Janeiro. As aulas se iniciaram em julho de 1840 e eram ministradas por Simplicio Antonio Mavgnier. A matrícula era gratuita e as exigências eram semelhantes àquelas feitas pelas faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Bahia. No currículo estava previsto o ensino de arte obstétrica teórica e prática, compreendendo Anatomia, Fisiologia e moléstias provenientes do parto. Apesar de estar sujeito à inspeção do diretor do Liceu, o curso estava estabelecido fora de suas instalações, as aulas eram ministradas no Hospital Paraíso (MOTT, 1998).
Este curso também esbarrou em questões legais que inviabilizaram sua continuidade, pois apenas as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Bahia eram as únicas autorizadas a fornecer diplomas. O curso do Liceu também estava fornecendo diplomas e autorizando o exercício da profissão às alunas. Uma longa discussão se sucedeu entre as autoridades até que “através de uma carta confidencial do ministro de Estado dos Negócios de Império, ao presidente da província de Pernambuco, fica-se sabendo o que foi resolvido: as alunas da cadeira de Obstetrícia não deveriam ser matriculadas na Junta Central de Higiene, porém poderiam continuar a exercer o ofício sem serem perturbadas!” (MOTT, 1998).
Após a morte de Mavgnier, o curso entrou em declínio até que o governo perdeu o interesse por ele e o extinguiu (Maria Mott não conseguiu precisar a data de término). Em 1875 foi reaberto um curso de partos em Recife, no Hospital Pedro II. Consta que ainda no ano de 1884 o curso continuava funcionando regularmente, habilitando normalmente as alunas (MOTT, 1998).
Outras iniciativas: Estados Unidos
Um fator foi decisivo para as primeiras iniciativas nos Estados Unidos para a criação de cursos para parteiras: o desenvolvimento e consolidação do ramo da medicina dedicado a assistência à gestação e parto, ou seja, a obstetrícia. Igualmente decisiva foi a importância social que o médico começou a adquirir com o estabelecimento de terapêuticas mais eficazes. Conforme novas técnicas e instrumentais foram sendo desenvolvidas pelos obstetras, possibilitando a eles um maior sucesso e humanização nos atendimento aos partos difíceis, e desta forma, ampliando as possibilidades de atendimento aos partos normais; e com a gradual inclusão da cadeira de obstetrícia nos currículos das escolas médicas, fortaleceu-se a idéia de que os obstetras eram experts no assunto. O que nem sempre correspondia a realidade (DONEGAN, 1984). Sendo assim, a parteira tradicional negava com seu conhecimento prático e a grande maioria dos atendimentos com bons resultados, todo o arsenal tecnológico que os médicos desenvolveram no sentido de tornar o parto ditócico3 mais rápido e seguro. Outro aspecto fundamental para a iniciativa dos cursos, no que diz respeito à sociedade norte-americana, foi a transformação do evento do parto, tido como de natureza familiar e social, para um evento médico potencialmente patológico. Isto se deu através de um esforço de convencimento da clientela levado a cabo pelos médicos. Tal mudança passou a exigir o atendimento de um especialista que dispusesse de um conhecimento sofisticado e elaborado para o manuseio dos instrumentos (tais como o fórceps, o pelvímentro, o estetoscópio), para manter o andamento do trabalho de parto longe dos riscos potenciais. Ou seja, sob controle dos médicos (DONEGAN, 1984).
Se o parto não é mais um evento natural da vida da mulher e requisita conhecimentos especiais para mantê-lo dentro de padrões de segurança e riscos controlados, como atender às mulheres sem ofender a moral e a pureza feminina, expondo-as aos olhos e mãos masculinas? A resposta, para boa parte da classe médica, seria o treinamento de parteiras. A mesma atitude cultural que delimitou a mulher a “natural esfera doméstica” (apoiada pelo saber da medicina do período), e que fez pensar que uma verdadeira mulher não seria capaz de ser treinada para desempenhar uma atividade tão “delicada” sem ferir sua modéstia e virtude, preferiu treinar mulheres para atendimentos aos partos e evitar expô-las excessivamente às técnicas e aparelhos utilizados exclusivamente pelos obstetras. Não se tratou de uma verdadeira tendência de restaurar-se a parturição para a mulher com inspiração no movimento de direitos femininos (este buscava alargar as oportunidades de estudo e atividades profissionais para as mulheres). Mas sim, remover da sociedade o paradoxo criado pelo conflito das demandas de modéstia e segurança (DONEGAN, 1984).
Houve tentativas do governo colonial, e posteriormente, do estado nacional em implementar um Plano Continental para o estabelecimento de escolas onde as parteiras pudessem receber treinamento formal, embora sem sucesso. Também é verdade que todas iniciativas de organização de ensino para a formação de médicos, não recebiam auxílio governamental. O que surgem são escolas médicas de origem privada, as quais recebiam também mulheres para treinamento em Obstetrícia. O que significou muito mais o início do ingresso no ensino de nível superior em medicina para as mulheres, do que apenas o treinamento formal das parteiras já existentes (DONEGAN, 1984).
Mas, nem os críticos dos praticantes masculinos, nem os aliados da causa das mulheres
conseguiram restaurar a obstetrícia para a mulher. Apesar dos argumentos destes dois grupos chamassem a atenção para a incongruência da mulher gestante aceitar o serviço de um parteiro e ao mesmo tempo conseguir observar os ditames do rígido código de moral. Mesmo assim, aos poucos, após 1850, passou a ser costume entre as mulheres de classe-média e classe-alta chamar um médico para o atendimento dos partos, mesmo em casos normais. A idéia de progresso da ciência e a promessa de um parto rápido e seguro fizeram com que a solicitação de um doutor se tornasse cada vez mais comum entre as famílias de mais recursos nas grandes cidades do norte dos Estados Unidos (DONEGAN, 1984).
Nos anos iniciais do século XX, os serviços de uma parteira já tinham sido em boa parte substituídos pelos de um médico nas grandes cidades americanas. Sobretudo para aqueles que podiam pagar os honorários de um doutor. Contudo, nos locais mais istantes, desprovidos de recursos médicos e onde a população era pobre, a parteira era praticamente a única a prestar assistência ao parto. Ela também provia serviços médicos através de cuidados à mãe e ao recémnascido. Houve debates quanto à extinção ou não da prática das parteiras entre os membros da classe médica. Eles consideravam a atuação das parteiras como um problema de saúde pública, pois a idéia da grande responsabilidade das parteiras por contaminar as parturientes e os recém nascidos com infecções pós-parto, em função de sua falta de treinamento formal, ou seja, pelo desconhecimento de práticas higiênicas era constante. Tal idéia era compartilhada entre os doutores, seja qual for o lado em que estivessem os debatedores, a favor da manutenção ou simpatizantes do término da prática das parteiras (Kobrin, 1984).
Esta preocupação levou a alguns estados mais pobres dos Estados Unidos, como o Mississippi nas décadas iniciais do século XX, a criarem, dentro de seu Quadro Estatal de Saúde, programas para regular a prática das parteiras leigas. Estas, em grande número, atuavam em precárias condições. No Mississippi elas fizeram boa parte dos partos até 1940. Nas comunidades afro-americanas as parteiras realizaram 80% de todos os partos até aquela data. Com a instituição de um programa de treinamento para melhorar o atendimento dado pelas parteiras, houve a aproximação entre elas e as enfermeiras de Saúde Pública. As parteiras negras, conhecidas como “grannies”, foram muito atuantes nos programas do Quadro de Saúde Estatal, auxiliando na propagação dos hábitos de higiene e na realização de campanhas de vacinação entre a comunidade negra.
A importância social destas mulheres em suas comunidades fez com que elas se tornassem um corpo informal do Quadro de Saúde. O respeito e confiança que a população depositava nas parteiras, e o interesse das mesmas em promover melhores condições de saúde para suas comunidades, fez com que os oficiais do Quadro de Saúde modificassem sua opinião sobre as “grannies”, passando a ver estas mulheres como uma ajuda importante nos programas de Saúde Pública, um verdadeiro elo de ligação entre as ações do estado na área da saúde e as comunidades.
Elas não eram mais vistas então como um problema de Saúde Pública (SMITH, 1994).
O treinamento das parteiras ajudou muito a baixar as taxas de mortalidade materna e infantil. O programa compreendia reuniões mensais com leituras do Manual das Parteiras, inspeção do material usado no atendimento aos partos e exames rotineiros de saúde para que as parteiras não contaminassem as parturientes e bebês com alguma doença que por ventura pudessem ter contraído (SMITH, 1994).
Com o passar dos anos, as parteiras mais velhas foram sendo aposentadas pelo Quadro
Estatal de Saúde sem a reposição de outras em seus lugares. Aos poucos, os serviços de saúde nas áreas rurais do Mississippi foram sendo ampliados e a urbanização atingiu as áreas onde estas parteiras atuavam. O processo de urbanização acabou modificando os costumes e os modos de viver da clientela, a qual passou gradativamente a buscar um hospital para o atendimento aos partos. Em 1982 o estado do Mississippi tinha apenas 13 parteiras leigas registradas, desde muito tempo não se emitia novas permissões ou se mantinha sessões de treinamento (SMITH, 1994).
Considerações Finais
Diante dos exemplos de iniciativas aqui apresentados, podemos dizer que, quanto aos cursos das faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Bahia no século XIX, todos os autores apontam para a importância das constantes reformas de ensino destas instituições. Estas se concentraram principalmente nos requisitos necessários às candidatas para o ingresso. Progressivamente, exigiu-se formação educacional mais completa, assim como a limitação de idade privilegiou o ingresso de candidatas jovens. Outro aspecto restritivo era a exigência de atestado de boa conduta, que em um primeiro momento, deveria ser expedido pelo juiz de paz da freguesia de residência da candidata e posteriormente passou a se configurar como autorização do pai (ou quem estivesse em seu lugar).
No caso das casadas, era necessária a autorização dos maridos. Desta forma, os autores evidenciam constituição de um perfil desejado para a profissional a ser formada. Ao ingressar no curso de partos a futura parteira não precisaria possuir habilidade, experiência e conhecimentos anteriores aos obtidos no treinamento. A aluna ideal seria uma jovem sem tempo para contato com outras parteiras mais experientes, e principalmente, de uma camada social com recursos financeiros suficientes para proporcionar-lhes instrução escolar o bastante para cursar a cadeira de partos em uma faculdade de medicina. Todo conhecimento sobre a arte de partejar seria adquirido nos bancos escolares.
Um saber obstétrico acadêmico, produzido pela perspectiva científica do século XIX. O caráter do ensino, preponderantemente teórico e não prático, não estava apenas ligado à dificuldade de conseguir parturientes em número suficientes para suprir as necessidades do ensino prático do parto, que estivessem dispostas a se sujeitarem a serem objeto de estudo. É bem provável que, ao desvincular a atividade médica do antigo caráter “manual” e prático relacionando-a ao saber erudito por meio dos currículos destes cursos, purificou-a da marca das classes “baixas” que antes as exerciam e significou elevar a profissão médica em nível social dando aos iniciados um status diferenciado dos antigos cirurgiões e parteiras. Assim, seria mais adequado aos filhos das famílias mais aquinhoadas dedicarem-se a medicina sem reprovação.
É perceptível também o interesse de se delimitar prática da parturição a um grupo sócioeconômico distinto daquele que vinha até então o exercendo. As parteiras tradicionais eram oriundas das camadas populares, em sua grande maioria não tinham acesso ao ensino formal, sendo assim, muitas se quer sabiam ler e escrever, o que impedia o ingresso nos cursos. Estes, por força da lei, eram os únicos a estabelecimentos no Império autorizados a fornecer o diploma de parteira. Título obrigatório para o exercício da atividade. Ou seja, estes cursos não só estavam dando a formação, mas também eram parte das estratégias de regulação da prática parturição no país em termos oficiais.
Uma das queixas freqüentes nas denúncias feitas pelos médicos contra as parteiras, que endossaram as iniciativas de treinamento das mesmas, seria que as parteiras, diante de anormalidades no processo do parto, não pediam a tempo a presença de um cirurgião, tendo em vista que estas estavam limitadas ao atendimento de partos normais. Tal delimitação da prática das parteiras foi definida pelos médicos. Estes consideravam tal comportamento como conseqüência da ignorância das parteiras, por estas não saberem identificar o limite de sua prática. Desta forma, segundo os médicos, as parteiras colocavam em risco a vida daqueles que deveriam proteger. Outra queixa constante era de que as parteiras eram anti-higiênicas e através dos atendimentos sucessivos, sem o devido cuidado com a limpeza, transmitiam infecções puerperais.
Mesmo assim, com todos esses argumentos, os cursos de partos no Brasil, em suas
primeiras iniciativas não tiveram o êxito esperado por seus idealizadores. O costume de se recorrer à comadre continuou durante muito tempo, seja pelos custos dos serviços de uma parteira ou parteiro treinados, seja pela quase inexistente fiscalização da atuação das curiosas. Ou mesmo, em função da difundida prática do uso de manuais de medicina popular, os quais orientavam em caso de partos, o que fazer a quem soubesse ler e estivesse pronto a atender uma mulher em trabalho de parto.
Outro aspecto importante tinha relação com a origem social das candidatas ao curso. Moças com possibilidade de formação esmerada para época, sabendo ler, escrever, Inglês, Francês, Química e Física, além de História Natural, provavelmente teriam outros objetivos que a prática da parturição. E mesmo, é importante pensar se a família aceitaria tal destino para uma filha. Primeiro para se formar seria necessário estudar em proximidade com rapazes e homens, situação essa pouco aceitável na época. Outro aspecto importante, e que seria o mais esperado para as moças de boa formação no período, é que uma educação tão esmerada seria mais bem aplicada na educação e formação dos filhos.
Os aspectos da moral sexual foram também importantes motivações para a criação dos
cursos, tanto no Brasil como nos casos apresentados sobre os Estados Unidos. O excesso de pudor e recato fez com que durante muito tempo as mulheres, em ambas as sociedades, se recusassem a serem atendidas por médicos parteiros. Apenas, com um grande esforço por parte dos médicos para promover o convencimento da clientela das vantagens de se contratar um médico, é que aos poucos, o avanço dos obstetras no atendimento aos partos normais se deu mais regularmente. O auxilio do arsenal de novidades em termos de técnicas e instrumental e o maior domínio sobre a anatomia e fisiologia dos partos também contribuíram para desfazer a imagem perante a clientela de que o obstetra, muitas vezes, possuía menos capacidade no atendimento aos partos que a parteira.
Enfim, podemos dizer que para o sucesso das iniciativas aqui apresentadas foi fundamental a mudança das mentalidades sobre a natureza do evento do parto, da segurança que significava a utilização dos novos conhecimentos da Obstetrícia e de como estas modificações atuaram em uma reelaboração da imagem do obstetra perante a sociedade. Também se pode dizer que, no caso das parteiras do Mississippi, a mudança de opinião das autoridades de Saúde Pública, quanto à importância social destas mulheres, foi fundamental para a melhoria das condições de saúde da população e significou um melhor atendimento aos partos, sem necessariamente findar de uma só
vez com a prática das parteiras.
REFERÊNCIAS
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LEAVITT, J. W. (Editor) Women and Health in America: Historical Readings. University of Wisconsin
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MOTT, M ª L. de B. Parteiras no Século XIX: Mme. Durocher e sua época. In:COSTA, A. de O. &
BRUSCHINI, C. (org.) Entre a Virtude e o Pecado. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. pp. 37-
56.
__________.Partos , Parteiras e Parturientes: Mme. Durocher e sua época. 1998. Tese (Doutorado
em História Social) Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo. São Paulo.
KOBRIN, E. F. The American Midwife Controversy: A Crise of Profissionalization. In: LEAVITT, J. W.
(Editor) Women and Health in America: Historical Readings. University of Wisconsin Press, 1984. pp.
318-326
PEARD, J. “ Physicians and Women in Bahia” . In; Race, Place, and Medicine: The Idea of Tropics in
Nineteeth-Century Brazilian Medicine. Duke University Press, 1999, pp. 109-137.
ROHDEN, F. Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2001.224p.
SMITH, S. White nurses, black midwives, and Public Health in Mississippi, 1920- 1950. In: Leavitt, J.
(ed.) Women and Health in America, University of Wisconsin, 1999, 2nd edition, pp. 444-428.
FONTE: CAPES - Revista Eletronica "Espaço para Saúde"
Muito bom ter esse artigo aqui, Tricia. Estava procurando sobre as escolas para parteiras e te encontrei. Vou colocar esse artigo no site também.
Beijo
Adriana